Os discos que continuamos a girar
Da herança do vinil às audições no Spotify, analisamos os últimos 60 anos de edição discográfica em Portugal e dissecamos o presente da música nacional.
Este artigo é o capítulo final da série "Estamos a ouvir mais música portuguesa?". Antes, debruçámo-nos sobre a ascensão da música no espaço mediático nacional na viragem do milénio e analisámos 16 anos de tabelas oficiais de vendas em Portugal.
Depois do silêncio imposto a dois pontos de escuta, na Fonoteca Municipal do Porto (FMP) só o confinamento parou o último gira-discos. As portas deste arquivo sonoro abriram ao público no final de setembro de 2020. Agora estão fechadas como quase tudo o resto, adiando audições para um futuro ainda turvo. Nos poucos meses em que recebeu visitantes, as paredes forradas de discos acolheram melómanos e curiosos. Alguns, no final da adolescência e a entrar na vida adulta, tornaram-se presença assídua. “Estas pessoas, quando vêm à fonoteca, vêm porque querem ouvir um disco em vinil. Querem estar ali sentados a ouvir enquanto leem, desenham ou estudam, até. À velocidade que nós andamos, é justamente o oposto daquilo que todos têm facilmente no telemóvel: que é pôr a música a dar, fechar e desligou. Mas quem gosta de música procura uma relação de compromisso. Colocar o disco a tocar e, se calhar, perder um ou dois minutos a pensar na vida e a olhar para a agulha… E parece contraditório, mas há uma geração mais nova que procura uma alternativa a essa enxurrada de dados e de informação.” - a reflexão de Armando Sousa, arquivista e programador do espaço, remete para um ritual de décadas. Ouvir um disco de vinil pode parecer estranho para gerações criadas nos anos 90 e no início do milénio, mas colocar a agulha no socalco certo foi o gesto que melhor norteou o consumo musical nos últimos 60 anos em Portugal.
Para perceber se estamos a ouvir mais música portuguesa, importa entender a evolução da edição discográfica por cá. Para tal, recorremos a uma das maiores bases de dados de fonogramas, o site Discogs. Um fonograma é a edição de uma gravação musical: pode ser um CD, um vinil ou uma coleção de ficheiros digitais, para dar alguns exemplos. No Discogs estão listados mais de 13,7 milhões de fonogramas de todo o mundo, em dezenas de suportes, e de todas as eras que nos deixaram registos deste tipo.
Mudam-se os tempos, mudam-se os suportes
Nos anos 90, os discos de vinil eram objetos obsoletos. A portabilidade da cassete e do CD encantou milhões de pessoas e os portugueses não foram exceção. Ouvir música tornou-se uma atividade mais prática e acessível. De repente, era possível escolher a música que tocava em viagens de carro ou enquanto se fazia exercício na rua, enfim, atividades que carregar um gira-discos não facilitava. O CD tinha ainda outras vantagens em relação à rodela de plástico que o precedeu: era menos frágil e permitia tocar áudio durante mais tempo sem necessidade de parar a reprodução a meio. Apesar de ter uma qualidade de som ligeiramente inferior à do vinil, a diferença era residual. Do outro lado da barricada, as editoras abraçavam o suporte por ser mais rápido, mais fácil e mais barato de produzir.
Análise a mais de 68 mil entradas correspondentes a todas as edições discográficas em Portugal com data de lançamento, listadas na plataforma Discogs. Inclui música nacional e edições portuguesas de obras estrangeiras, bem como várias versões da mesma obra. Mais informações nas notas metodológicas do artigo.
Ainda que tenha sido abandonado pelos grandes grupos discográficos a certa altura, o vinil nunca deixou de circular em Portugal. Aliás, os primeiros discos nacionais a serem listados na base de dados do Discogs são precisamente uma mão cheia de discos editados na viragem do milénio pela Kaos Records, uma das mais importantes casas da eletrónica feita por cá. A persistência do PVC feito à medida dos gira-discos de discotecas manteve o formato vivo, mas por um fio. Entre 1994 e 2008, as edições neste suporte não alcançaram os três dígitos anualmente. É aí que a revolução entra em marcha. À medida que o CD foi perdendo a força, o retorno do vinil tornou-se inevitável, ainda que à boleia do mercado internacional. Em setembro de 2020, a associação da indústria discográfica norte-americana (RIAA- Recording Industry Association of America) declarava que as receitas de vendas em vinil ultrapassaram finalmente as dos CDs. Naquele país, a última vez que tal acontecera tinha sido em 1986. De 2008 para 2019, o número de edições em vinil mais do que triplicou, mas continua bem longe dos valores alcançados nos tempos áureos. Entre 1975 e 1985, o vinil dominou sem rival e publicaram-se, em média, 1375 títulos ao ano. Para comparação: no melhor ano recente, 2019, foram lançados apenas 360.
As palavras de Armando Sousa ecoam o ilustrado pelos gráficos: “O vinil é muito mais representativo historicamente do que outros suportes. Em termos de antropologia e arqueologia musical, o espectro de gravação e de reprodução é muito maior do que o do CD ou do digital”. De facto, o vinil foi o suporte de eleição em Portugal durante mais de três décadas. Acumulando singles e álbuns quase na mesma proporção, representa mais de metade do total da edição discográfica dos últimos 60 anos e quase o dobro dos CDs (cerca de 41 mil títulos contra cerca de 22 mil). Não é só na longevidade que a importância deste suporte enquanto artefacto musical se revela. Até há relativamente pouco tempo, estes discos eram a única maneira prática de aceder a gravações de áudio com qualidade.
A transição digital revelou-se catalisadora da ascensão de outros suportes, pelo que o vinil não foi o único a reconquistar o seu espaço na edição física. Apesar de apresentarem números modestos, as cassetes voltaram a ganhar terreno sobretudo a partir de 2015. Nesse ano, a Monster Jinx editou a sua primeira cassete. A aventura começou pela série de coletâneas “ROXO”, mas acabou por alastrar a outros números do seu catálogo. Até hoje, a editora lançou quase uma dezena de registos neste suporte – todos esgotados. A fita magnética também atraiu outras editoras independentes. Caso raro na música eletrónica, que costuma preferir o vinil, também a Rave Tuga escolheu a cassete como suporte físico primordial. A próxima, assinada por Mind Safari, sai no final de janeiro.
O regresso da cassete é uma das óbvias influências da edição independente na diversidade de suportes disponíveis. Em meados dos anos 90, o CDr (CDs que podiam ser gravados em casa) começou a ganhar alguma expressão. Não obstante uma perda progressiva de quota de mercado face à aposta digital, manteve números relativamente estáveis durante cerca de uma década. Garantindo cerca de cem registos por ano entre 2003 e 2014, o CDr foi ainda o segundo formato mais popular entre 2002 e 2005, sendo um testemunho da importância da democratização de acesso aos formatos no segmento independente. Fora do gráfico deixámos o corte manual de discos de vinil (“lathe cut”), que também aumentou embora de forma reduzida: cerca de 40 registos nos últimos cinco anos. Sem números para mostrar ficam arrojos de outros tipos. Capicua, J-K, Mike El Nite e Zé Menos são artistas que materializaram álbuns em livro; já David Bruno incluiu bases para copos na edição física de “O Último Tango em Mafamude”.
No que respeita aos suportes mais comuns, o único que parece ter efetivamente ficado pelo caminho foi o CD. Mesmo com a pirataria a desfalcar as recheadas contas dos grande grupos editoriais no início deste século, a quantidade de títulos editados ao longo da sua dinastia portuguesa manteve-se relativamente estável entre 1995 e 2015, pesem algumas oscilações anuais. Não foi a força das transferências digitais que acabou com o seu reinado. O grande CD acabou destronado por uma potência que não aparece nestes gráficos. E sem dados de nacionalidade disponíveis para a maior parte dos artistas e editoras, tentámos encontrar a resposta à nossa pergunta noutro sítio.
Um campeonato jogado para lá dos discos
2013 foi um ano quente em Portugal. Com a Troika instalada, os protestos e as greves tornaram-se frequentes, o emprego escasso e a emigração a realidade de milhares de portugueses. Depois da classificação do fado como património imaterial da humanidade pela UNESCO no final do ano anterior, as vozes do género alcançavam novos públicos e dominavam as tabelas de vendas de álbuns. No YouTube, as versões oficiais de telediscos já eram partilhadas pelos canais VEVO, mas a sua oferta ainda era demasiado escassa para que fosse considerado um serviço de streaming musical. O Soundcloud dava passos firmes, mas o seu alcance estava confinado a um núcleo de músicos não profissionalizados e/ou ligados movimentos específicos como a eletrónica e o hip-hop. Assim, as opções para ouvir música em fluxo eram essencialmente pagas: Deezer, Rdio e Music Box da MEO (desta lista só a primeira sobreviveu até aos dias de hoje). Alavancada pela possibilidade de streaming gratuito ilimitado, a Spotify foi então recebida de braços abertos quando finalmente trouxe o seu serviço para Portugal, em fevereiro desse ano.
Não existem dados disponíveis sobre o alcance local da plataforma, mas sabemos que é atualmente a líder global no seu segmento. De acordo com a informação pública mais recente, tem 320 milhões de utilizadores ativos, dos quais 144 milhões pagam por subscrições. A prevalência de sistemas móveis Android, bem como o facto de a Amazon existir por cá apenas através da sua congénere espanhola, deixam adivinhar que só o YouTube compete realmente pelo público nacional no mesmo campeonato da empresa sueca.
A liga do streaming é complexa. Nos media e nas redes sociais, sucedem-se as críticas aos valores pagos por audição, mas o problema da equação é uma questão de escala. Afinal, a plataforma não paga consoante o número real de audições, mas antes pela quota de cada artista face ao total. A narrativa induz em erro. Em apenas dez anos de operação, a plataforma sueca desembolsou mais 10 mil milhões de dólares em royalties, sendo esta a maior despesa da sua operação e a principal razão pela qual continua sem dar lucro. Desde 2017, a empresa aloca 52% dos seus resultados líquidos a pagamentos deste tipo a editoras e detentores de direitos fonográficos; é deste bloco que os artistas recebem. A esta fatia acresce 10-15% entregues aos autores dos temas – os artistas são quem interpreta um tema, os autores são quem o escreve ou compõe. Resumindo, as plataformas pagam muito dinheiro para poderem manter vastos catálogos, mas fazem-no a intermediários.
A contrariedade assenta sobre um sistema em que apenas três grupos de edição discográfica (Universal, Sony e Warner) controlam quase dois terços do mercado global de gravação e publicação. São sobretudo estes que nivelam as negociações relativas a direitos de autor. Após múltiplas batalhas legais e culturais, o streaming é hoje a principal fonte de receita de uma indústria que se dizia à beira do precipício. Um relatório desenvolvido pelo site especializado Music Business Worldwide relativo a 2018 indicava que os três grandes faturam diariamente 19 milhões de dólares com o streaming. Em 2019, a indústria discográfica global registou o seu quinto ano de crescimento consecutivo, estando cada vez mais perto dos máximos históricos alcançados na viragem do milénio. Os dados da fundação internacional da indústria fonográfica (IFPI - International Federation of the Phonographic Industry) apontam para receitas superiores a 20 mil milhões de dólares; mais de metade seguradas pelo streaming.
Em 2021, um artista precisa, sensivelmente, de 175 mil audições no Spotify para gerar receitas equivalentes ao salário mínimo nacional. O número intimida, mas felizmente são vários os artistas portugueses que ultrapassam essa marca, acumulando alguns milhões de audições e centenas de milhares de ouvintes mensais, casos de: Agir (410 mil), Diogo Piçarra (341 mil), David Carreira (340 mil), Plutónio (275 mil), Mariza (265 mil), Fernando Daniel (195 mil), Carolina Deslandes (190 mil), Blaya (150 mil) e Ana Moura (145 mil), entre outros. Mas será o suficiente para enfrentar os gigantes da música mundial?
Com quase 65 milhões de audições, os Wet Bed Gang são os grandes campeões da liga nacional na plataforma sueca. O grupo de Vialonga faz a dobradinha e assegura igualmente o maior número de entradas – 980, mais 24 que o segundo classificado, o rapper norte-americano Post Malone. Não são o único caso de sucesso nacional (destacados no gráfico com colunas a verde). Piruka (#4), ProfJam (#7), Julinho KSD (#8) e Plutónio (#9) ajudam a preencher a tabela dos dez artistas com maior número de audições, uma lista onde o hip-hop domina quase sem rival. Apenas Ed Sheeran (#2) e Billie Eilish (#6) figuram isolados como representantes de música para lá desse género.
Análise a quase 43 mil entradas correspondentes às tabelas semanais Top 200 Singles do Spotify em Portugal. Mais informações nas notas metodológicas do artigo.
No Spotify, apenas 21% do número total de entradas das tabelas de 200 singles mais populares por semana são de artistas nacionais. Este número está bastante abaixo da marca conseguida nas tabelas de vendas de álbuns, mesmo nos piores anos deste milénio. No entanto, quando olhamos para as audições acumuladas, a diferença torna-se um pouco mais ténue, pelo menos durante certos períodos. Em 2018 e 2019, a tendência crescente foi praticamente contínua até atingir o pico em novembro de 2019 graças ao esforço combinado de vários artistas. Nesse mês, Julinho KSD ultrapassou sozinho a marca dos 4,5 milhões de audições e Plutónio continuou a trilhar o seu rumo à certificação de platina e esteve muito perto dos 4 milhões, mas o exército nacional não ficaria completo sem as investidas de Bispo, Piruka, Nenny, Wet Bed Gang e Slow J – cada um destes artistas acumulou mais de um milhão de audições. Pela primeira vez, a música lusófona foi mais ouvida do que a música estrangeira. Podemos nem sempre ouvir muita música portuguesa, mas caminhamos numa direção em que se ouve mais música em português. E, por agora, fica claro que o brilho de certos artistas nacionais é bem capaz de ofuscar as estrelas internacionais. Mas com tantos zeros para bater, o que sobra para quem não pertence a esta elite astronómica?
Do passado para o futuro, ninguém para os discos
Doada maioritariamente pela RDP e pela Rádio Renascença, a coleção de 35 mil discos de vinil preservada pela FMP inclui música nacional, estrangeira e muitos sons além dessas melodias. “A fonoteca é não só um arquivo de consulta gratuito e livre, mas também uma catapulta para a exploração deste acervo musical extremamente vasto.” João Brandão, CEO da Arda e coordenador-geral do projeto, apresenta o potencial de um arquivo ímpar no nosso país. Pela maneira como surgiu e consequente vocação para a música em vinil, o limite temporal do catálogo neste momento situa-se algures nos anos 90. No entanto, a equipa da FMP aceita doações de discos de vinil sem discriminação de géneros nem datas de lançamento – e isso inclui os editados na atualidade. Enquanto aguarda pela oportunidade de reabrir as instalações, a divulgação cultural da FMP continua a fazer-se à distância, no seu site. E há muita música portuguesa para descobrir.
Notas Metodológicas
Os dados relativos às edições discográficas provêm da base de dados de fonogramas disponível no Discogs à data de 1/1/2021. No total, foram compiladas 81860 entradas correspondentes a qualquer fonograma cujo país de origem esteja definido como “Portugal”. Para a análise temporal, foram filtradas as 68698 entradas que incluíam uma data de edição. Embora alguns títulos estejam potencialmente omissos e tenham sido detetados alguns dados incorretos durante o processamento de dados, a amostra é assumida como representativa da edição discográfica em Portugal durante o período explicitado.
Extraímos a tabela semanal das 200 canções mais ouvidas em Portugal no Spotify conforme o disponibilizado em Spotify Charts. Os dados são relativos ao período entre 29/12/2016 e 31/12/2020, totalizando 42856 entradas. Utilizámos a API do MusicBrainz para conseguir a informação relativa à nacionalidade dos artistas. Esta informação foi verificada e retificada manualmente.
O código desenvolvido no âmbito deste artigo está aberto e disponível no GitHub do Interruptor.