De repente, a música em toda a parte
Na viragem do milénio, os meios de comunicação social assumiram um papel fundamental enquanto agentes culturais, promovendo uma diversidade até então desconhecida por cá. A música ganhou espaço em quase todas as frentes mediáticas, num acontecimento que moldaria a geração millennial e as que lhe sucederam.
Este artigo faz parte da série "Estamos a ouvir mais música portuguesa?". No capítulo seguinte, examinamos dezasseis anos de tabelas oficiais em Portugal.
Apesar da crise financeira e da contínua precariedade daqueles que a fazem e promovem, a música portuguesa resistiu. Nos últimos vinte anos, as constelações sonoras que por cá habitam multiplicaram-se sem ofuscarem as restantes, havendo galáxias inteiras para praticamente todos os gostos. Artistas nacionais têm digressões internacionais e trabalham com nomes lendários da música mundial. Os festivais de música ficaram maiores, espalharam-se um pouco por todo o território, levando a música para mais perto de quem a ouve. Passados mais de 50 anos, finalmente, ganhámos um Festival Eurovisão da Canção. Vendem-se menos discos, é certo, mas a proporção de música portuguesa nas tabelas de vendas aumentou significativamente. Noutras métricas de popularidade, no ano passado, sete dos dez temas mais ouvidos no YouTube no nosso país tiveram a mão de artistas que cresceram em Portugal.
Com todos os seus defeitos e limitações, a música portuguesa gosta muito mais dela própria atualmente do que há vinte anos. A mudança chegou quase sorrateira. Na viragem do milénio (1997-2007), os meios de comunicação social assumiram um papel fundamental enquanto agentes culturais, promovendo uma diversidade até então desconhecida por cá. A música ganhou espaço em quase todas as frentes mediáticas, num acontecimento refletido numa democratização de acesso que moldaria a geração millennial e as que lhe sucederam.
A revolução foi transmitida pela televisão
À medida que a televisão por cabo ia conquistando o território nacional, a música foi estabelecendo os seus próprios quartéis-generais - determinantes para que o som nacional ganhasse uma nova camada de fãs. Mas antes que esse rumo pudesse ser trilhado, a chegada dos privados à televisão generalista ajudaria a educar ouvidos para sons mais abrangentes.
Generalista é para todos, mas sobretudo para os mais novos
Foi em 2003 que a TVI estreou a série juvenil Morangos com Açúcar. O tempo viria a confirmá-la como uma das grandes divulgadoras de música nacional nos anos seguintes, dando visibilidade em horário (quase) nobre a uma coleção de nomes que dificilmente apareceriam juntos noutras circunstâncias: Boss AC e Hands on Approach brilhavam em alinhamentos ao lado de artistas românticos, como Menito Ramos, Rita Guerra e Paula Teixeira. Tal como aconteceu com outras novelas de produção nacional, alguns dos temas que polvilhavam os episódios acabaram por transpor a barreira da emissão e tornaram-se referências do imaginário coletivo das gerações que foram servindo de audiência. Ao longo de quase dez anos de transmissão, lançou várias bandas e projetos musicais, como os D’ZRT e os 4Taste, que alcançaram um sucesso quase inimaginável para a larga maioria dos artistas portugueses naquela altura, tendo direito a álbuns em nome próprio, coletâneas, múltiplas gamas de produtos licenciados, digressões e anos a fio de concertos a abarrotar por todo o país.
Apesar de serem o caso mais emblemático na ilustração da importância da ficção televisiva nacional na divulgação musical junto do público mais jovem, os Morangos não foram a primeira fruta a trazer alguma diversidade à televisão generalista virada para os petizes milenares. Em 1997, a banda sonora da série Riscos (RTP, 1997) já tinha arriscado na combinação de sonoridades alternativas com nomes mais populares – juntando Quinta do Bill aos Cool Hipnoise, por exemplo. Três anos mais tarde, a adaptação da saga “Uma Aventura” para o pequeno ecrã incluía cinco temas de “O Monstro Precisa de Amigos” dos Ornatos Violeta, transportando os nortenhos diretamente para a sala de milhares de crianças e pré-adolescentes aos fins-de-semana de manhã. A banda sonora que acompanhou os episódios da primeira série contava quase só artistas nacionais.
Por esta altura, assistiu-se igualmente ao ressurgimento de programas de talentos em horário nobre em todos os canais generalistas, o que terá ajudado a refinar o gosto pop destas camadas. Durante os anos 90, o Chuva de Estrelas (SIC, 1993-2000) reinara quase sem oposição neste segmento, mas ao fim de sete anos o formato de imitações estava esgotado. Sara Tavares e João Pedro Pais foram os maiores nomes que saíram do programa; Carolina Torres e Vera Kolodzig participaram na sua versão júnior, o Mini Chuva de Estrelas (SIC, 1994-95). A reviravolta foi gradual, mas chegou a todos os canais de sinal aberto. Popstars (SIC, 2001), Academia de Estrelas (TVI, 2002), Operação Triunfo (RTP, 2003) e Ídolos (SIC, 2003) desvendaram grupos de culto, como as Nonstop, e muitos artistas que continuam preencher a música e o espaço mediático português atualmente, casos de Dino D’Santiago, Luísa Sobral e, mais tarde, Luciana Abreu.
A reboque da SIC, que dominava as audiências quase sem rival na segunda metade da década, a exposição da música ligeira alargou consideravelmente com a chegada de programas dedicados também aos outros canais, com Made In Portugal (RTP) e Reis da Música Nacional (TVI). Mas foi graças à panóplia de espetáculos de variedades com que a estação de Carnaxide inundava as casas portuguesas que a revolução se concretizou. Destes, o natural destaque vai para o Big Show SIC. A catapulta que atirou João Baião para uma carreira televisiva de sucesso esteve no ar seis anos (1995-2001), oferecendo três horas semanais de “TV em movimento”, com a maior parte desse tempo dedicado à música. Será difícil dissociar o programa da explosão de fenómenos pop no final dos anos 90, como os Excesso ou os Santamaria, e da consagração da música “pimba”. As dezenas de vídeos que resistem ainda hoje no YouTube confirmam o quanto alimentou o sucesso de nomes como Emanuel, Ágata, Romana, Ruth Marlene, Mónica Sintra ou Toy, para nomear apenas alguns.
A escola Ediberto Lima Produções seria, ainda, responsável por um dos programas mais vistos de sempre na televisão portuguesa. Conduzido por uma Ana Malhoa ainda adolescente, entre 1994 e 1998, o Buéréré (rapidamente transformado em Super Buéréré) levava desenhos animados e muitos artistas convidados aos mais novos, numa receita imbatível que garantia à SIC um share médio de 92% nas manhãs de fim-de-semana. De certa forma, uma espécie de Big Show SIC adaptado ao público infantil, o programa também ajudaria a cimentar o segmento da música para as massas - incluindo através de temas originais, cujos CDs venderam 240 mil cópias.
A alternativa do cabo
Talvez o cruzamento entre os vários caminhos televisivos (e não só) pareça pouco óbvio, mas foi precisamente a multiplicidade de frentes que mudou a paisagem. No cabo, ao ser assegurado tempo de antena televisivo a géneros alternativos como a eletrónica, o hip-hop, o indie rock e, até, o metal, tornou-se claro que havia espaço no mercado para um pouco de tudo. Ou, pelo menos, que esse espaço existiria num futuro relativamente próximo.
Ainda que tímida, a chegada do Sol Música, em 1997, foi uma lufada de ar fresco. O canal, que no início estava mais virado para a música latina e outros ritmos quentes, começou a incluir sons nacionais na sua fusão particularmente diversa. Segundo relatos em fóruns da altura, “desde Kussundulola a Rodrigo Vox Ensemble… Tudo está lá”. A aposta parece compensar e, algures entre os anos 1999 e 2000, a estação divide-se em congéneres dedicadas a Portugal e Espanha. Sem apresentadores, mas com alguma programação especializada, o Sol Música Portugal funcionava como uma lista de reprodução automatizada em que os grandes nomes internacionais nunca ofuscavam os nossos recônditos talentos. A diversidade era notória, havendo espaço para quase todos os sabores que o catálogo nacional tinha para oferecer: Anjos, Clã, Entre Aspas, Dealema, Fonzie, Gomo, GNR, Lúcia Moniz, Madredeus, Melão, Moonspell, Rui Veloso, Susana Félix, Toranja. Não havia barreiras. Na Arrentela, reza a história que o altar do canal juntava grupos de miúdos à hora marcada para assistir a “National Ghettographik” de Chullage, qual sagrada eucaristia. Apesar do brilho, o sol foi de pouca dura. Em 2005, fruto de resultados menos satisfatórios, acabou substituído nas operadoras portuguesas.
Uns anos antes, em 2001, a SIC Radical revolucionou a oferta de conteúdos para uma geração que desesperava por algo diferente. A aposta de ouro: o Curto Circuito. Caso raro de longevidade na produção televisiva nacional, resistiu ao encerramento do fugaz CNL, mantendo-se no ar no Canal Programação da TV Cabo até estacionar definitivamente na estação de Carnaxide (onde sobrevive até hoje). Desde o seu início, a música assumiu um papel de destaque no programa que a certa altura garantia três horas de entretenimento diário a um público maioritariamente adolescente. Tinha segmentos musicais, como a sua própria tabela de vídeos votada pelos espetadores, rubricas de especialidade e manteve, durante alguns anos, a figura do DJ residente. Em época alta, o CC inaugurou a tradição de cobertura intensiva dos festivais de verão com reportagens, dezenas de horas de diretos contínuos, e transmissões de concertos de todos os grandes festivais de música da altura: SBSR, Sudoeste, Vilar de Mouros, Paredes de Coura e Rock in Rio.
Para lá do CC, a aposta da estação na música foi clara quase desde a sua génese – com telediscos a servirem de separadores e um leque variado de programação dedicada, como o Alta Tensão, o Beatbox ou o Dance TV, que foram contributos particularmente valiosos para a visibilidade de géneros que se mantinham um pouco à margem da atenção generalista.
No ar a 1 de Julho de 2003, o produto da MTV Portugal manteve-se fiel ao da casa-mãe, privilegiando a música que trepava mais alto nas tabelas de vendas, embora com alguma margem para propostas um pouco mais arrojadas e tendo sempre em conta a sua audiência particularmente jovem. Passar música portuguesa, contudo, não se traduzia necessariamente em muitos refrões em português. Aliás, nos primeiros cinco anos da estação, o MTV Europe Music Award para Melhor Artista Português foi atribuído três vezes a bandas que cantavam maioritariamente em inglês – Blind Zero (2003), The Gift (2005) e Moonspell (2006). Contudo, alinhada com os avanços da cena internacional, o hip-hop e a eletrónica foram alargando o seu espaço nas rotações de telediscos e o português voltou a ser ouvido. Da Weasel, Expensive Soul, Sam The Kid e os Buraka Som Sistema foram alguns dos nomes que conheceram particular exposição na nossa versão do canal de música mais conhecido do mundo.
Fora da caixa mágica, nesse universo cada vez mais longínquo de publicações físicas, as bancas de quiosques e tabacarias também se enchiam de sons. Para lá da pop que recheava as páginas de títulos orientados para o público feminino adolescente (Bravo, Super Pop, Ragazza), foram várias as aventuras especializadas. Revistas como a Dance Club, a Hip-Hop Nation e a Loud alimentaram paixões a título regular com CDs incluídos e, quase sempre, com algum espaço para a produção local. Em 2006, o semanário Blitz tornou-se uma revista mensal, aguentando a edição física mais de uma década - em Dezembro de 2017, publica o seu último número, ficando reduzido ao site.
Uma maré de onde o português se evaporara
Fundada por um pequeno grupo de imigrantes brasileiros, a Rádio Cidade foi uma das estações-pirata que conseguiu garantir um alvará, ainda no final dos anos 80. Virada para o público jovem, seria uma das protagonistas da disseminação da música eletrónica na década seguinte. Suprema nas audiências e sempre acelerada, a sua fórmula estava orientada aos grandes êxitos de tabelas, dando particular atenção a sons mais dançáveis - com o house, o techno e o eurodance a garantirem bastante tempo de antena.
Ainda com apenas um fraquíssimo transmissor na Amadora, a popularidade da estação foi de tal modo extraordinária que obrigaria o grupo Renascença a exigir uma alteração no modo como era feita a contagem das audiências. Em 1999, a Rádio Cidade é adquirida pela Media Capital por cerca de 12,5 milhões de euros (mais de 18 milhões, ajustada a inflação). Quatro anos depois, justificando-se com quebras nas audiências, a administração força o sotaque brasileiro a abandonar estação, substituindo-o por uma Cidade FM cor-de-rosa, de tons pop e R&B, mais em linha com o que viria a ser a geração Morangos.
Contudo, na zona da grande Lisboa, a música de dança ganhou outro aliado fortíssimo no éter. A emissão da Mix FM era uma discoteca onde ninguém era barrado; aberta todo o dia e todos os dias, de 1999 até ao seu encerramento, em 2011. No Porto, a Rádio Nova Era assumia o posto de comando da música de dança. Já no Algarve, os refrões orelhudos e a repetição de compassos 4/4 estavam a cargo da Kiss FM.
Com o Nu Metal em pleno apogeu, o rock também se fazia ouvir bem alto. No ar desde 1998, a Mega Hits (à altura, Mega FM) foi conquistando o seu espaço agarrada às guitarras. Nos estúdios da Media Capital, a Best Rock FM acabaria por ocupar o lugar deixado vago pela reformulação da Rádio Comercial. Ambas emitiam para as zonas de Lisboa, Porto e Coimbra. Apesar de não tocarem muita música nacional, acabaram por marcar o imaginário de quem procurava um rock de encher estádios.
Em relativamente pouco tempo, várias rádios de tons mais alternativos tentavam lançar o seu anzol a outros cardumes, sobretudo na Grande Lisboa. De certa forma herdeira da XFM, a Voxx ainda se ouviu na Invicta. O sonho durou pouco tempo, acabando logo em 2005, mas a sua marca ainda hoje deixa saudade aos ouvintes mais dedicados. Também no início do século, a Oxigénio e a Radar começaram a sua missão de endoutrinar novas camadas de ouvintes em sonoridades mais diversificadas das que passavam nas estações de maior audiência.
Embora com um alcance local, estações universitárias como a RUC (Coimbra), a RUM (Braga) e a RUA (Algarve) também se mantiveram firmes na divulgação de música nacional. Fora dos grandes centros urbanos, a Antena 3 foi segurando o barco, passando por múltiplas metamorfoses ao longo dos anos. Entre 2004 e 2008, alcança o pico de audiências, impulsionada pelo mote “A primeira vez é sempre na 3” e uma forte presença nos festivais de verão.
Nas ondas hertzianas, apesar da pluralidade de opções, a música nacional estava tendencialmente afastada da antena. No entanto, numa medida polémica mas fortemente aplaudida pelas grandes editoras e sociedades detentoras de direitos de autor, em 2006 são impostas quotas de música portuguesa para a grande maioria das estações de rádio. A maré estava prestes a virar.
Sacar música é levá-la a todos
O problema é que o mercado dos milenares não era o mesmo da indústria discográfica. Do Napster para o Kazaa, do Limewire para o eMule, até ao Pirate Bay… O software e os protocolos de transferência de ficheiros foram mudando, mas a pirataria dominou a primeira década do milénio, derrotada apenas pelo streaming, que só chegou em força bem mais tarde - o Spotify chegou a Portugal em 2013. Para lá das redes de partilha, serviços de chat como o IRC e, mais tarde, o MSN Messenger facilitavam as trocas entre conhecidos e desconhecidos. Pelos recantos da internet, passeavam versões oficiais, bootlegs e até demos.
Apesar de a lengalenga da pirataria enquanto grande ladra das receitas dos músicos alimentar a narrativa das grandes editoras, a verdade é que as quebras de vendas de discos em Portugal são anteriores a isso. Habituados a esse ritual desde adolescentes, os millennials serão, por ventura, a geração que mais terá transferido música da internet de forma não autorizada. Importa pôr os números em perspetiva, contudo: o número de assinantes de acesso à internet ultrapassa a marca de um milhão apenas em 2004, altura em que a banda larga chegava a cerca de 30% dos lares nacionais.
A progressiva democratização do acesso à internet repercutiu-se, igualmente, no surgimento de novos espaços de divulgação. Das mailing lists aos blogues, a existência da juventude na rede transfigurou-se na emergência da figura do consumidor-produtor. No caso de géneros como o hip-hop, a diferenciação entre os dois lados da barreira era particularmente ténue. Editoras independentes, como a Loop Recordings e a Matarroa, mantinham fóruns próprios nos seus sites, mas foi o H2Tuga que germinou a maior comunidade, num prolífico encontro de fãs com produtores e MCs. Apesar da sua frequência por utilizadores um pouco mais adultos, importa, ainda, mencionar o Fórum Sons, que se estabeleceu no final dos anos 90 como um dos grandes pontos de discussão musical na rede. Iniciativa do jornal Público, o fórum conheceria várias moradas até ao seu eventual desaparecimento sensivelmente uma década depois.
O resto do mundo aqui tão perto
Além da comunicação social e da internet, também a indústria dos concertos e festivais florescia em Portugal. No final do milénio passado, nasciam o Sudoeste e o Marés Vivas, o Paredes de Coura internacionalizava o cartaz e o Vilar de Mouros regressava com edições anuais. O gigantesco Rock in Rio aterrou em Lisboa no ano do Euro2004. No ano seguinte, a MTV escolhia a capital para a entrega dos seus European Music Awards.
Com a música do mundo inteiro à distância de meia dúzia de cliques e algumas horas de espera, os jovens portugueses passaram a ouvir de tudo um pouco. As trincheiras, escavadas pelas várias tribos que se faziam ouvir quase desde o rescaldo do amanhecer pop português dos anos 80, começavam a perder importância enquanto estruturas sociais, numa espécie de armistício que fez com que malta do reggae também ouvisse metal, ou que miúdos do rock independente se permitissem a dançar numa pista de eletrónica sem sentimentos de culpa, nem medo de retaliações. Os avanços não foram instantâneos, mas foram duradouros. As portas estavam escancaradas para a real abertura dos portugueses à sua própria música.