Colonialismo à portuguesa: A experiência (parte 2) - Série Memória Coletiva

Transcrição

RUTE CORREIA (introdução): Olá. O meu nome é Rute Correia e sou jornalista do Interruptor. O que estás prestes a ouvir é o segundo episódio de Memória Coletiva, uma nova série de podcasts do Interruptor orientada para questões coletivas com impacto na cultura dos nossos dias. Falamos de colonialismo à portuguesa. No primeiro episódio, fizemos uma contextualização histórica do período colonial. Hoje, destacamos a experiência imposta à população negra em Portugal, pelos resquícios do colonialismo – na violência a que estão sujeitos, na normalização do racismo pela comunicação social e na resistência constante ao espartilho do sistema.

Quando fiz as entrevistas que vamos ouvir, ainda a Lusa não tinha publicado uma notícia em que chamava “preta” à deputada do PS Romualda Fernandes. Graças aos automatismos que governam parte do ciclo noticioso, esse texto foi rapidamente disseminado por vários órgãos de comunicação social de cobertura local, regional e nacional. O incidente levou à demissão praticamente imediata do editor de política da agência noticiosa portuguesa, levou também à abertura de um inquérito interno e à movimentação de alguns jornalistas da casa que manifestaram total repúdio para com o sucedido. Também não tinha acontecido a jornalista Conceição Queiroz, da TVI, ter sido insultada com ataques racistas no exercício da sua profissão, em direto na televisão nacional.

Os intervenientes deste capítulo são os mesmo do anterior - ouvimos Carlos Pereira, Vítor Sanches, Paula Cardoso e Helena Vicente. Podes acompanhar a transcrição no nosso site: em interruptor.pt. Antes de prosseguir, deixo o aviso de que o teor de alguns trechos do programa envolvem violência e descrições gráficas, pelo que podem ser difíceis de ouvir por pessoas mais sensíveis.

(GENÉRICO INTERRUPTOR)

RUTE CORREIA (de fundo, em entrevista): Carlos, eu vou começar se calhar por um post que tu fizeste há muito pouco tempo no Instagram em que dizias que o palco era onde te sentias livre. Quando é que tu percebeste que o palco era a tua casa?

CARLOS PEREIRA: (RISOS) Eu sinto que ainda não tenho idade suficiente para responder a estas questões. Ou seja, a forma como a pergunta foi elaborada pede uma certa resposta, uma pujança de resposta que eu ainda não tenho... a minha idade ainda não me permite responder a esta.... O que eu sinto, sabe, Rute, ainda bem que me fez esta pergunta...

RUTE CORREIA (narração): Carlos Pereira é humorista. Tem uma rubrica na RDP África e é repórter do 5 para a meia-noite, na RTP1. Antes de chegar aqui, quis ter quase todas as profissões.

CARLOS PEREIRA: Eu já contei esta história tantas vezes que até já me aborreço a mim mesmo e então tenho que tentar arranjar formas para torná-la interessante para quem vai ouvir. Imagina, eu não tenho essa coisa que eu desde novo que eu sabia que queria ser, que queria isto e não sei quê... Se bem que, por acaso venho de uma família de artistas, no sentido em que o meu avó fazia peças de teatro lá em S. Tomé, mas nunca tive essa coisa em mim... Sei lá, eu lembro-me que queria ser advogado, queria ser médico, queria ser arquiteto, quis ser publicitário… Sempre quis ser empresário de futebol... É uma coisa meio absurda, yah, mas sempre me fascinou muito o lado obscuro do futebol... mas para tentar percebê-lo, 'tás a ver?

RUTE CORREIA (narração): Em 2005, também Portugal destilava futebol – talvez mais ainda do que o habitual. Apesar dos dois títulos europeus arrecadados de seguida pelo Futebol Clube do Porto, a derrota da seleção nacional em casa, na final do Euro 2004, ainda doía. Nas celebrações do 10 de junho de 2005, José Mourinho foi um dos condecorados pelo então presidente da república Jorge Sampaio. O treinador não marcou presença na cerimónia, por estar ausente no estrangeiro, mas por essa altura já tinha o estatuto de herói nacional.

Esse dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, calhou a uma sexta-feira. Não que tenha feito muita diferença, já que era feriado. Conforme o habitual para a época, alguns milhares de jovens dos arredores de Lisboa cumpriram o ritual de irem à praia. Vinham da Linha de Sintra, de Loures, da Amadora, de Oeiras… Vinham um pouco de todo o lado, porque o sol quando brilha é para todos. Na praia de Carcavelos, o ponto de encontro era junto à velhinha bola da Nívea – o normal, portanto.

(clipes de noticiários do dia 10 de junho de 2005)

Foi assim que abriram os noticiários dessa noite, naquele que é um dos episódios mais vergonhosos do jornalismo nacional: o pseudo-arrastão. Chamo-lhe pseudo porque, de facto, nunca aconteceu. E a notícia de algo que não aconteceu foi alimentada durante dias a fio em reportagens, análises, crónicas e comentários espalhados por toda a grande comunicação social da altura. A primeira notícia foi dada pela Agência Lusa às 16h30:

(LEITURA DA NOTÍCIA DA AGÊNCIA LUSA POR TIAGO CRISPIM – TEXTO INTEGRAL): «Cerca de 500 adultos e jovens constituídos em “gangs” entraram hoje as 15:00 na praia de Carcavelos, concelho de Cascais, e começaram a assaltar e a agredir banhistas, disse fonte policial.

0 comissario Gonçalves Pereira, da Esquadra da PSP de Cascais, adiantou à Agência Lusa que os “gangs” fizeram vários assaltos, criando o pânico e a confusão na praia de Carcavelos, onde se encontram muitos banhistas.

A PSP de Cascais fez deslocar para a zona elementos, nomeadamente. das secções de intervenção e investigação criminal, tendo os agentes policiais feito disparos para o ar para atemorizar os assaltantes. Não há conhecimento, por enquanto, de que a PSP tenha feito detenções. Compareceram também no local ambulâncias dos Bombeiros e do Instituto Nacional de Emergência Médica.

Há informação de duas mulheres feridas, mas uma das vítimas disse aos jornalista que foi atingida "por engano" pelos agentes policiais.»

RUTE CORREIA (narração): A longo do dia, a Lusa foi reforçando a notícia – acrescentou depoimentos de banhistas, de outras fontes oficiais, como o Presidente da Câmara Municipal de Cascais e, já à noite, as primeiras reações de políticos, nomeadamente do CDS-PP e do PSD. Entre os dias 10 e 12 de junho, a Agência Lusa divulgou 23 notícias sobre o acontecimento. Em nenhuma delas usou o termo “arrastão”. Essa palavra surge na televisão, graças a Hélder Gabriel, que a vai repetindo no seu depoimento - primeiro na SIC e, mais tarde, nas restantes estações.

(clipe do depoimento de Hélder Gabriel em noticiário do dia 10 de junho de 2005)

Hélder Gabriel era concessionário de um dos estabelecimentos da praia de Carcavelos e foi um dos protagonistas televisivos dessa noite.

No dia seguinte, o não-acontecimento estava na primeira página de todos os jornais diários nacionais. Apesar das diferenças editoriais, o tom do desenvolvimento assentava nas informações dos despachos da Lusa, que indicava uma violência organizada por um grupo de 400-500 jovens, que originaram um cenário de “pânico” ou “terror”. Em quase todos meios, Hélder Gabriel é uma das testemunhas citadas. As fotografias que ilustravam os acontecimentos mostravam jovens negros a correr pelo areal.

O pseudo-arrastão foi desmentido logo no dia 12 de junho, na SIC, numa entrevista com o Comandante da PSP de Lisboa, em que o mesmo refere explicitamente que “não estava convencido de que se tivesse tratado de uma ação coordenada e organizada”. Mas os comentários acicatados, ancorados em narrativas racistas e xenófobas direcionadas maioritariamente às comunidades africana e de afrodescendentes, continuaram a dominar o espaço mediático durante alguns dias. A história chegou mesmo à imprensa semanal e até à internacional, com meios como a BBC e a CNN a noticiarem de acordo com o emitido pela Lusa.

Foi apenas uma semana depois, no dia 17 de junho, que as declarações da Direção Nacional da PSP que contradizem a narrativa propagada pelos media começaram a ser publicadas nos jornais. A partir daí, alguns meios e jornalistas tentam desmontar o assunto, mas o estrago já estava feito.

VÍTOR SANCHES: Eu acho que é...tipo...eles têm que ter noticia para que o pessoal, ler e ver, né? Nos jornais ou na televisão, eles têm que ter notícia, às vezes… É a competição para a audiência também, não é? E vendas. Obviamente que quando eu falo aqui, eu só posso falar aqui da Cova da Moura e das minhas experiências, e pronto, eles têm uma agenda para aqui, aqui pode ser em termos de habitação, pode vir em várias outras formas, então.… Eles fazem essa propaganda contra a Cova da Moura, por exemplo. Para eles, pronto, estão a por mais lenha na fogueira, porque aqui é a 10 minutos de Lisboa, aqui é um sítio excecional, na minha opinião, que na vista governamental ou na vista pública, é uma boa forma de rentabilizar e investir alguma coisa aqui, né? Então tentam sempre, como aconteceu nos outros bairros, né? Difamar o máximo que podem que é para terem razões para a sua demolição. Na minha opinião, também nisso, isso é a maneira como eu penso, há pessoas que podem estar a pensar de outra forma, mas eu acho que é muito importante saber que eles têm aqui uma agenda para a Cova da Moura em termos de policiamento, em termos de má fama e etc. O pessoal agrupa-se aqui e são cinco pessoas e dizem que são cem, ‘tás a ver? E assim sucessivamente e pronto...e obviamente tem muitas outras vertentes também que podemos falar que acontecem aqui na zona, mas que é sempre dito de uma outra forma. Então as noticias que tem sempre, é umas noticias de fora para dentro, em vez de ser uma voz de dentro para fora. a falar, mas sim, acho que tem um...sempre teve um plano, principalmente, para bairros, de...porque são bairros e são pessoas...que também que estão nesses bairros que as pessoas são pobres, não só sofrem de racismo, mas também de classe social, estás a ver, e... isso é uma das coisas que eles querem, permanecer, querem que tu fiques pobre, ou ainda mais pobre, então, o policiamento nesses locais são ainda mais fortes, né?...As vantagens que tiram daqui, das pessoas boas daqui ainda é mais forte; tiram partido da falta de informação que as pessoas têm, estás a ver? E fazem todo esse jogo por trás, porque o pessoal que está aqui não é bem instruído, é...é...não é bem instruído no sentido de...no sentido de que facilmente, tiram vantagens desse pessoal, então, o pessoal tem essa vulnerabilidade das coisas, mas passam aqui coisas que são incríveis...

RUTE CORREIA (narração): Vítor Sanches recebeu-nos, juntamente com colega e amigo Zeca, na Dentu Zona: atelier, livraria e loja cultural na Cova da Moura.

Neste início de tarde em abril, as nuvens estão carregadas mas só se abrirão à hora do lanche. O alcatrão da Rua Principal ainda está escorregadio por causa da chuva que caiu de manhã. É quarta-feira, depois de almoço. Crianças regressam da escola… Os adultos juntam-se com a distância devida à frente dos cafés que vão populando cada lado da rua. O clima é de proximidade, como se fosse uma aldeia às portas de Lisboa.

Face à queixa apresentada pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial à Alta Autoridade para a Comunicação Social contra os vários meios que reportaram o pseudo-arrastão, o regulador emitiu uma longa deliberação em que – passo a citar - concluiu que “a forma como foram noticiados os acontecimentos [é] um verdadeiro study case sobre o modo como não se deve fazer informação (…) sem qualquer espírito crítico, sem confirmar as fontes, omitindo declarações de intervenientes que procuraram dar um relato diferente dos factos, evitando ouvir mesmo o comandante da PSP que, desde muito cedo procurou, sem qualquer êxito, desmentir as primeiras informações que teria sido levado a fornecer por manifesta inabilidade e manipulação.”

No mesmo documento, é enaltecido o trabalho da jornalista Diana Andringa na desconstrução da narrativa, de meios como a Capital e, mais tarde, o Expresso e a Visão, que contestaram a versão inicial dos factos com múltiplos trabalhos.

O relatório da PSP com a descrição dos acontecimentos fazia notar que no dia 10 de junho de 2005, a praia de Carcavelos estava bastante cheia, com cerca de 15 mil banhistas no areal. Os alegados assaltantes “não excederam os 50”, tendo sido registadas "apenas duas queixas por roubo de objectos pessoais". Continuo a citar: "muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e fotográficas(...) não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres" e, em parte, da própria polícia cuja presença e agressividade os intimidou.

Apesar de ríspidas, as 51 páginas da deliberação da AACS não tiveram mais efeito do que um grande puxão de orelhas.

VÍTOR SANCHES O pessoal vem aqui e pronto, é da maneira como as noticias são feitas, é mesmo com essa intenção de ouvir outras pessoas, não ouvir a comunidade, não vem da comunidade, essas palavras. Eu como vendedor, eu quando vou a um sítio, tipo ao Jardim da Estrela ou ao Príncipe Real, eu tento sempre desconstruir isso, porque as vezes tens o trabalho todo....fazes o trabalho todo positivo à volta do bairro e chega...em 2 minutos uma pessoa chega e destrói aquilo tudo que construíste, ou que já foi construído, então, quando eu falo assim do pessoal que é atacada aqui, que seja pelos media e tal… Pessoal mais velho também que não ouves falar. São pessoal resistente, mas é resistência à maneira deles. É uma resistência à maneira deles e é muito importante a gente também validar essa resistência, que é importante, porque eles continuam a estar aqui, eles continuam a representar a zona, e isso é muito importante porque aqui, não é um sitio que o pessoal tem de vir romantizar, ‘tás a ver? Aqui são pessoas mesmo que vivem o dia a dia atrás do....pronto, a vender, atrás do lume, do fumo, tás a ver? Ou vender na rua o peixe e tal, são vidas mesmo a sério, onde é a situação económica é muito importante, né? A situação económica que eles têm que ultrapassar é muito importante, as vezes até entram em dívidas, só para conseguirem aquele pão do dia a dia.

RUTE CORREIA (narração): A saída Este da estação de comboios de Sta.Cruz/Damaia está fechada. É a saída mais perto da Cova da Moura. Diz-me o Vítor que a passagem aérea foi encerrada ainda antes do início da pandemia com a justificação de servir de guarida a pessoas em situações de toxicodependência e sem-abrigo. Para lá das placas que informam o encerramento da saída, é difícil encontrar informação sobre o assunto. Não há aviso sobre quando nem porque fechou, nem sequer se há planos para a reabertura. A Infraestruturas de Portugal nunca respondeu aos nossos pedidos de informação.

Sair pelo outro lado da estação obriga a uma subida íngreme de cerca de 400m até ao bairro. Os mais em forma cortam caminho pelo meio dos canteiros, mas andar pela terra solta ou por lama em dias de chuva não é para todos. Desde que a saída foi encerrada, quem sai do bairro para apanhar o comboio todos os dias anda cerca de 4km a mais todas as semanas.

Um ano depois do pseudo-arrastão, o Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas fez um pedido de desculpas público. Nessa altura, o alto comissário, Rui Marques, afirmou: “se os culpados são incertos e ninguém assume a culpa, eu creio que uma voz, como a do Alto Comissário, deve nesta ocasião pedir desculpa, tendo a clara noção de que esta notícia falsa causou um enorme prejuízo a milhares de pessoas que já sofrem de exclusão social, do estigma da associação à criminalidade”, reforçando que “esta pena adicional é injusta”.

16 anos depois, parece que ainda está tudo por fazer, conforme nota Paula Cardoso, jornalista e fundador da plataforma Afrolink.

PAULA CARDOSO: Não é possível cicatrizar seja o que for. Se nós não conversamos sobre o assunto e nós continuamos a não conversar sobre o assunto, a assobiar para o lado, a fingir que não aconteceu. Isto continua a ser evidente quando nós temos no espaço televisivo mainstream - televisivo e não só, nos media em geral -, quando nós vemos estes debates ou estas conversas a serem trazidas, é sempre com uma superficialidade tremenda culpa e uma irresponsabilidade, do meu ponto de vista, até que começa logo na escolha dos intervenientes. Não é possível termos conversas sobre estas temáticas com painéis que são maioritariamente brancos. Não dá, isto não é sério. Eu lembro-me do último Prós e Contras que houve sobre esta temática: havia uma pessoa não branca naquele painel onde estavam, sei lá, seis ou sete pessoas. Havia bastante plateia negra, que eu fui, que houve um repto para nós irmos e eu estive nessa plateia. E não houve da parte de quem estava a conduzir o programa um esforço de ouvir a plateia. Havia ali uma oportunidade tremenda de se ouvir a plateia e isso não se fez. Portanto, se existia aquela ausência no painel e depois quando a apresentadora Fátima Campos Ferreira foi confrontada com isso, a resposta dela é aquela resposta me faz rir mas que revela o quão isto não é tratado com seriedade: que ela diz que convidou outras pessoas mas que não podiam. E eu penso mas quer dizer então eu vou à minha agenda de contactos eu convido as pessoas que fazem parte da minha agenda e não tenho alternativas e é assim que as coisas se fazem.

Por isso é que nós não quebramos isto, porque se eu só vou me restringir a mim a minha agenda. E depois houve uma pessoa que até disse, sim, eu fui contactada e sei de outra pessoa que foi contactada mas eu nem sequer estava em Portugal e eu expliquei que não estava em Portugal e sugeri a outra pessoa mas a Fátima Campos Ferreira não quis convidar outra pessoa é tão simples quanto isto mas não consegue assumir isto pois não consegue assumir. Porquê? Porque eu acho que um receio depois de não controlar a narrativa de alguma forma. Não que ela achasse que aquelas pessoas iriam servir a narrativa dela não é isso que está em causa. Mas como me conhece tem uma relação de proximidade, cria ali uma ilusão qualquer de que a pessoa se calhar vai ter algumas reservas de falar de determinadas coisas de uma forma mais contundente. Acho que existe essa expectativa...

RUTE CORREIA (narração): No dia 18 de junho de 2005, numa visita à Cova da Moura, o então Presidente da República, Jorge Sampaio, defendia uma atualização da lei da nacionalidade que permitisse aos filhos de estrangeiros obter a cidadania portuguesa. Mas o perigo da normalização do racismo empolado pela comunicação social não tardou a chegar.

Precisamente nesse dia, cerca de 300 pessoas juntaram-se em Lisboa, num evento classificado pela PSP como a “maior manifestação xenófoba de sempre” em solo nacional. A marcha foi convocada pela Frente Nacional, grupo neo-nazi fundado e dirigido à altura por Mário Machado, figura recorrente quando se fala de racismo em Portugal. Precisamente dez anos antes, foi um dos arguidos julgados no âmbito do processo desencadeado pelo assassinato de Alcindo Monteiro, de que falaremos em detalhe um pouco mais à frente neste episódio.

Não precisamos de recuar nem sequer um ano para conhecer as suas vítimas. A 25 de julho de 2020, menos de dois meses depois de uma das maiores manifestações anti-racistas no nosso país (a propósito do movimento Black Lives Matter), o ator Bruno Candé sentado num banco da Avenida de Moscavide com a sua cadela Pepa foi assassinado em plena luz do dia por Evaristo Marinho, com quatro tiros à queima-roupa ao fim de dias de insultos e ameaças. Marinho aguarda em prisão preventiva o desfecho do julgamento pelo crime de homicídio qualificado agravado por ódio racial. Atrás de si, deixou um rastilho de perigo e pânico para quem partilha a cor de pele com Bruno Candé.

CARLOS PEREIRA: Semanas depois de acontecer aquilo do Candé, eu estava a passear o meu cão, sem trela, porque ele é um cão muito obediente e não sei quê, e é pequenito, e estávamos ali no jardim, e veio uma cadela também sem trela e envolvem-se os dois numa brincadeira, e o dono é meio uma pessoa idosa - idosa ao ponto de estar confortável a passear o cão na rua sem trela. Começam a brincar e vão para trás do monte. E eu chamo o meu cão e ele volta, e o senhor chama a cadela e a cadela não volta, e eu pronto, o meu cão é pequeno, portanto dificilmente ele ia matar a cadela, e o gajo vai chamando a cadela, a cadela não vem, ela vai.a correr e não sei quê, ele vira se assim: "Pois, a culpa é do seu cão, puta da raça". E eu a pensar, “Às tantas é a raça do cão”, e até que ele diz isto: “um gajo vai para casa buscar uma pistola....uma pessoa vai para casa buscar uma pistola, dá um tiro nestes gajos, depois dizem que nós é que estamos mal”, diz isto. Yá, tipo, imagina o que é que é para um jovem, uma coisa tão gratuita e tão...é isto. E estavam uns miúdos a brincar, miúdos nenhuns, tinham tipo 18/20 anos, e passa um deles que ouve entre outros impropérios que o velho...que o senhor foi dizendo que as tantas, agora, vendo bem não era velho nenhum, vai dizendo e ele diz assim, "o que é que o gajo está para ai a dizer, pá?" Epá, não sei, ele disse que vai buscar uma arma e matar, "epá, matar quem? o gajo está mas é chalupa", e eu assim para o meu cão, vamos mas é embora que isto, e ele "não vás nada, se isto der para o torto nós chegamos para o gajo, somos 4/5 chegamos para o gajo”. E que depois ele vai dar a volta, e agora pá? E o meu cão? Epá, não passeasse sem trela, caramba. Se não tem confiança suficiente para o seu cão voltar, não passeasse sem trela, e disse assim: "Andamos a brincar, é que andamos a brincar, se um gajo vai buscar uma pistola e não sei quê…". E eu vou para casa.

Agora, nos dias seguintes, tu não tens noção do pânico que foi estar a andar na rua e pensar que um dia estar a passear o meu cão. Para já, nunca mais fui passear o meu cão nesse parque. E um dia estava a passear o meu cão à noite e parou-me ao lado um carro com cinco gajos brancos e eu tremer todo. Pá, isto, as pessoas não tem noção, mas isto acontece, isto acontece, e já para não falar de...epá sei lá...um gajo na rua e teres medo só por seres negro, não é suposto, depois vêm para a televisão dizer, nós somos um pais que sabemos receber...sabem, claro que sabem, claro que sabem, sabem a ponto de matarem pessoas no aeroporto, é isto, tipo, nós somos um pais que trata...e depois as pessoas sentem tão...ou seja, o patriotismo frágil… Mas é, o patriotismo fragil, provem desta coisa do... Quando tu dizes que uma pessoa é racista, as pessoas não querem ser más, as pessoas associam o racismo a ser mau, portanto, não querem ser más, então dizem não sou racista, eu até tenho...até faço isto...eu não sou homofóbico, eu até tenho um amigo que é não sei quê. Mas o patriotismo frágil, faz com que depois as pessoas saiam a rua e dizem, mas este pais não é racista. Caramba, morreu uma pessoa! Estás a perceber? Para que é que precisas de mais?

RUTE CORREIA (narração): O patriotismo frágil que para sempre manchará o dia de Portugal, de Camões e das comunidades portuguesas – que, no Estado Novo, era o Dia da Raça, designação que continua a servir de escudo ao ódio.

Alcindo Monteiro foi admitido no Hospital de São José, em Lisboa, na madrugada de 10 para 11 de Junho de 1995. O diagnóstico detalhado no relatório médico era particularmente grave e incluía, entre outros danos corporais: “(…)lesão no tronco cerebral; edema cerebral muito marcado; fractura da calote craniana”. Alcindo Monteiro foi espancado violentamente por um grupo de skinheads, na rua Garrett, e ali deixado inconsciente. Entrou em coma profundo no início da madrugada de 11 de junho; o seu óbito foi declarado pelas 10h30 da manhã no dia seguinte. Tinha apenas 27 anos.

Na reportagem mais completa sobre os acontecimentos dessa noite, escrita por Fábio Monteiro para o Observador em 2014, a professora Isabel Ferin da Cunha chamou-lhe “A Vítima Perfeita”. Mas não foi só azar de Alcindo estar no sítio errado à hora errada, e ter o tom de pele errado… Na verdade, a sorte foi não ter havido mais mortes. Nessa noite, deram entrada nas urgências do São José um total de onze de pessoas negras vítimas de ataques semelhantes. Havia rostos desfigurados, escalpes a descoberto, narizes partidos, e marcas visíveis a olho nu de soqueiras e de armas brancas como paus semelhantes da tacos de basebol.

A 16 de junho de 1995, o PS, o PCP e o deputado independente Mário Tomé apresentaram, na Assembleia da República, votos de pesar pela morte de Alcindo Monteiro. O parlamento aprovou por unanimidade o voto do PS, aprovou também o do PCP (com a abstenção do CDS), mas rejeitou o de Mário Tomé – o único que pedia a declaração de um dia de luto nacional pela morte de Alcindo Monteiro.

A acusação inicial do Ministério Público incluía o crime de genocídio, que acabou por cair já quase no final do julgamento pela limitação da moldura penal que configura esse crime. Dos 17 arguidos, onze foram condenados pelo homicídio de Alcindo Monteiro com penas entre os 16 anos e meio e 18 anos de prisão; os outros, onde se incluem Mário Machado, foram condenados a penas mais leves, pelas restantes agressões da noite. A sentença também ditou uma indemnização de 18 mil contos à família de Alcindo Monteiro. Os cerca de 90 mil euros nunca foram pagos. O processo contou 14 volumes e cerca de 3 mil páginas. No dia da leitura da sentença, a 4 de junho de 1997, o grupo de arguidos entoou palavras de exaltação nazi e foi mandado sair da sala do Tribunal de Monsanto por comportamento incorreto – um dos arguidos chegou mesmo a esmurrar a divisória que os separava da comunicação social, partindo o vidro e a estrutura metálica.

No resumo do STJ, lê-se que os arguidos faziam “apelo ao "nacionalismo" e "racialismo", onde a vertente racista está sempre presente, e exaltam a superioridade da raça branca, considerando a raça negra como (...) inferior e a expulsar de Portugal. E é na prossecução de tal desígnio, a que de forma coletiva aderiram todos os arguidos intervenientes (...) agredindo todos os indivíduos de raça negra que se cruzavam no seu caminho.”

Depois de cumprirem as penas, vários dos condenados reincidiram na discriminação racial e noutros crimes. Alguns deles foram entrevistados nos últimos anos em programas de televisão, numa espécie de “estratégia de mediatização” combinada com “uma estratégia de branqueamento” dos acontecimentos que levaram à morte de Alcindo Monteiro, conforme refere o historiador Rui Tavares.


PAULA CARDOSO: Há aqui uma série de elementos que Portugal não acolhe que rejeita, que exclui e que levam a que as pessoas negras se vão anulando, porque era aquela questão que dizia, que a determinada altura é tão cansativo fazer esse caminho, que eu consigo compreender que muitas pessoas desistam de fazer, porque já estão fartas de ser humilhadas, já estão fartas de estar a passar pelos processos e sentirem que a única coisa que as afasta daquelas posições é a cor. Porque depois eu sei que nestas conversas há muita gente que diz “Ah mas agora tudo é racismo” e fala-se muito desta questão da moda, não é? Até se utiliza esta palavra e eu acho primeiro que, finalmente, estamos a conseguir falar sobre isto.

Portanto, é natural que quem nunca falou sobre isto e quem nunca ouviu falar sobre isto. Acho que seja uma novidade mas eu própria não tinha estrutura sequer para ter esta conversa contigo. Portanto não estava fortalecido o suficientes e portanto seria doloroso para mim estar a remexer, Ainda é doloroso como é óbvio mas eu já tenho uma outra construção identitária que me permite falar sobre estas coisas com algum distanciamento portanto percebendo que isto que nós não estamos aqui a falar de relações interpessoais.

Obviamente que as relações interpessoais também entram em determinados aspetos da nossa existência, mas aqui o que importa é avaliar o sistema em que nós vivemos a sociedade como um todo e como essa sociedade desde a nossa infância antes ainda de entrarmos na escola começa a criar categorias de pessoas. Essas categorias de pessoas estão presentes nas histórias que nós ouvimos quando ligamos a televisão nos desenhos animados que estão em todo lado portanto nós crescemos com um ideal branco a todos os níveis a todos os níveis. Portanto aquilo que é percecionado como desejável como sinonimo de bem estar de sucesso felicidade é branco não é negro. O negro pelo contrário é associado à exclusão, periferia, pobreza bairros problemáticos todo toda uma série de conceitos com uma conotação negativa que fazem como é óbvio, que nenhuma criança que seja, que pertença a estas realidades. Sinta orgulho de dizer que pertence. É difícil que alguém diga Eu sou dali com orgulho que assuma as suas origens e tudo tudo tudo tudo o que igual pertencer àquele lugar quando sabe que a volta vai ser olhada de parte vai ser catalogada como possível criminosa e como alguém que não vai ter possibilidades na vida porque existe esta questão. Os alunos negros serem empurrados para as vias profissionalizantes e tudo isto é, lá está é, são heranças que nós temos são heranças coloniais que nós trazemos aliás são heranças do império e portanto não é só o colonialismo temos de voltar muito mais atrás.

RUTE CORREIA (narração): A 1 de outubro do ano passado, data de aniversário de Alcindo Monteiro, a Câmara Municipal de Lisboa inaugurou uma placa em sua homenagem no local onde foi brutalmente assassinado. Alcindo tornou-se um símbolo da luta antirracista em Portugal, mas está longe de ser a única vítima.

Além dele e de Bruno Candé, lembramos também Fernando Justo e Luís Giovani Rodrigues, assassinados em 2003 e 2019, respetivamente, em crimes motivados por ódio racial. Do período esclavagista até à presente democracia, no nosso país, o racismo nunca deixou de matar. Mas talvez o mais grave seja o sistema que põe em perigo mais do que protege quem já está em risco.

Os alertas chegam de vários lados. De acordo com um estudo da Universidade de Coimbra divulgado em 2018, cerca de “80% dos processos instaurados pela Comissão pela Igualdade e Contra a Discriminação Racial entre 2006 e 2016 acabaram arquivados”; o mesmo estudo referia ainda que “dos 75 casos de agressão policial, nenhum resultou em qualquer condenação efetiva de agentes envolvidos”. Em 2017, também a ONU mostrou preocupação com os abusos policiais em Portugal, especificamente contra as comunidades africana, de afrodescendentes e cigana. Já o Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa, que visitou Portugal em 2013 e 2016, notou que a situação tem piorado e aponta que somos o país da Europa Ocidental com o maior número de casos de violência policial, sublinhando ainda que “riscos de abusos são maiores para afrodescendentes portugueses e estrangeiros, o que indicia discriminação racial pela parte das forças de segurança”. Em 2018, numa entrevista ao Fumaça, o dirigente da SOS Racismo, Mamadou Ba, afirmou que nos 15 anos anteriores, mais de dez jovens negros tinham morrido às mãos das forças policiais portuguesas. De acordo com os relatórios da Inspeção Geral da Administração Interna, entre 2006 e 2016, 31 pessoas morreram no decorrer de operações policiais.

Mas o caminho da luta antirracista não tem abrandado. Muito pelo contrário.

VÍTOR SANCHES: Para mim é impressionante, mas é um trabalho continuo, não estou a dizer que vai acabar, mas há coisas que podemos melhorar muito e melhorar muito é a questão se está na agenda do governo ou não, né? Isso é que é a coisa mais importante, não é só falar, ou debater, não! Tem que ter políticas que existem mesmo para proteção dessas pessoas e ter veículos, onde é que são, onde é que têm essa desconstrução também, na educação para os professores, na educação para....para o pessoal que trabalha no serviço publico, todo, um todo, nas escolas, tudo. Eu acho que é muito importante, mas é inexistente.

CARLOS PEREIRA: Tu tens uma geração que desce a Avenida da Liberdade após aquele acontecimento [no bairro] da Jamaica, porque aquela coisa foi uma coisa, para mim foi um marcar de uma viragem: tu teres jovens negros a descer a Avenida da Liberdade, sem medo, a reivindicar o seu espaço, e a dizer "Não não, nós viemos para ficar, contem connosco!”. Acho que mais do que toda a manifestação do Black Lives Matter, essa manifestação… foi forte, porque tiveste ali muitos jovens negros vindos dos bairros, sem medo de sair à rua, e isso assusta muita gente. E consequência disso, tiveste um deputado eleito, porque eu senti... na minha interpretação foi isso. As pessoas estão com medo, então meteram lá o André [Ventura] para nos controlar, na confiança de que...pronto...alguém tem que por mão neles. E depois pronto, as coisas estão como estão agora, mas é isso, é essa geração que diz "não. Eu vim falar, eu quero estar na televisão, eu formei me para ser jornalista, eu quero ser jornalista". Mas ao mesmo tempo também há essa geração de jovens negros, depois também tens uma geração de jovens brancos que já não estão dispostos a aceitar a tal falácia do "nós estudamos que damos a conhecer novos mundos ao mundo, nós somos os maiores" aceitar só o que os pais dizem lá em casa, porque nós somos mais e eles são menos. Não, já uma geração que já tem um sentido critico maior, já está mais consciente, já quer ir em busca das coisas e já quer perceber qual é o lado certo e posicionar-se nesse lado certo e isso é importante e isso é bom. E pronto, e aí entra depois a mobilização do Black Lives Matter em que já tiveste uma comunhão maior e de vários grupos e isso também...isso é fixe, dá esperança e tu pensas – ok, a luta já não é feita só de um lado, ou só por uns.

RUTE CORREIA (narração): São várias as iniciativas à construção de amplas estratégias de valorização e resistência destas comunidades. É o caso de Vítor Sanches e do seu projeto de desenvolvimento sócio-cultural, que envolve a marca de roupa Bazofo e a loja Dentu Zona, na Cova da Moura.

VÍTOR SANCHES: A intenção mesmo da Bazofo não é nós fazermos tudo. A intenção da Bazofo é distribuir também o trabalho à volta da zona, para ser inclusivo e reeducar a pessoa, ser um bocadinho social. E então pronto, o pouco que nós conseguimos fazer, fazemos e para nós é de muito valor, mas queremos estar numa posição que se calhar um dia podermos dar uma bolsa a um estudante, ou algo assim parecido, eu acho que é muito importante também. ;as é fazer, para apresentar um trabalho coeso, bom, as comunidades negras e a outras comunidades também, se gostarem e concordarem com essa vertente que a gente faz, mas… e dar a conhecer ao povo negro o que a gente faz porque essas coisas são muito importantes. Esse é o nosso foco. O nosso foco é mesmo empoderar a comunidade negra. E fazemos isso através de dar trabalhos, através de participação de outros artistas, através de pessoal que. Sim, participação de outros artistas que querem usar a Bazofo como veiculo também, como modelos, como costureiras, fotógrafos, graphic designers... Então, tenho todo um leque de pessoas que eu quero participar com elas, porque eu quero que elas sejam visíveis para as outras pessoas também, então para mim é assim, se eu tenho uma peça onde a Dona Alice faz, se eu não tenho ela aqui, vais ter de esperar até a Dona Alice fazer. Infelizmente, é assim, mas essa é a maneira que pelo menos possas conhecer a Dona Alice ou visualizar a Dona Alice. Já faz parte da nossa comunidade, do que é que tu queres pedir, já faz parte do círculo. E pronto, fazer gerar a guita aqui no bairro também, em varias mãos, em varias vertentes, é muito importante isso para mim, yah.

Nós sabemos que nós não podemos ser a 100%, mas nós tentamos o máximo possível, ser mais sustentável possível. Então, por isso é que nós optamos por várias coisas que não oferece outras comunidades, porque nos vimos de uma comunidade...eu vim dessa comunidade opressada. Não posso fazer a mesma coisa em termos de em termos de vendas ou em termos de compra, né? Então, eu compro...t-shirts ou compro o material que seja fair wear, né, e que tenha essa consciência sobre as comunidades que trabalham nelas e para mim é importante que seja também nessa vertente, porque eu trabalho nessa vertente para que pelo menos faça sentido também, e a gente aplica tudo, pronto, seja certinho e as cenas sejam bem aplicadas, né? E eu acho que....Essa é a nossa linha mesmo, a nossa linha é...é essa, não tem onde ir, porque nós já somos uma comunidade opressada. Então, temos que fazer o máximo possível, para não opressarmos ainda mais outras comunidades,né?

Também é...fazia todo o sentido, acho eu, então foi o que a gente optou, eu já lido com t-shirts há muito tempo, nê, já desde 2001/2, eu fortifiquei em 2005, mas tinha que ser para se tornar mais autossustentável e mais em controlo do que a gente...do que a gente faz, né? Eu acho que para mim foi uma coisa muito importante. Então é... não só a gente faz as nossas próprias peças, agora é ensinar a malta jovem também ou quem quiser usar o espaço, que é o espaço também é a oficina, ou o atelier Dentu Zona. E pronto, é fazer, é mais uma vertente que faz parte do projeto Dentu Zona, né? O projeto dentro da zona inclui cinema, inclui loja, inclui mercados, inclui também festas onde a gente impulsiona novos artistas, então pronto, a gente quer fazer é animar a zona e ao mesmo tempo consciencializar e empoderar o pessoal. Essa é que é a cena da Bazofo.

É importante… olha, o que eu estou a fazer é resgatar o máximo que eu puder os autores negros, que é para o pessoal negro ter acesso também. E eu acho que é bué importante ter isso numa loja cultural, porque faz todo o sentido. Se uma pessoa negra vier cá, ele obviamente se está à procura de alguma identidade, de alguma raiz, ou que seja assim alguma referencia, é bom eu ter cá ao pé, mesmo no bairro, eu acho que é uma coisa mesmo muito importante nós como comunidade ter esse espaço e lugar. Não só ter os livros cá, mas também ter aqui outros artistas que também tem oportunidade de apresentar os seus trabalhos, mas eu acho que esses espaços são muito importantes existirem, porque é uma outra essência e depois também abre sempre um espaço onde o pessoal pode aqui falar de varias coisas não é? Então, os meus livros vão de...Fazem um leque assim mais antirracista e também feminista, e pronto, romance também negro, e livros de crianças negras também é muito importante, e tem essa volta toda que eu acho que é...faz falta.

RUTE CORREIA (narração): Foi também pelas crianças que começou aquilo que viria a ser o Afrolink, de Paula Cardoso.

PAULA CARDOSO: Como é que surgiu o AfroLink? Eu costumo costumo recuar à criação da Força Africana, porque é a partir da Força Africana que eu tenho a ideia que eu começo a pensar em criar alguma coisa que dê presença digital a profissionais negros. Porque eu quando crio a força africana, que pretende ser uma coleção de livros infantis - neste momento existe um livro que foi impresso no final do ano passado. E eu ao fazer a Força Africana, quis que fosse com esta identidade negra. Por que é que eu que tivesse este perfil? Eu não sou mãe mas sou tia tenho cinco sobrinhos. A partir de outras infâncias nós acabamos por revisitar a nossa também. Esse é um processo muito natural e nesse revisitar da minha infância a partir da infância dos meus sobrinhos eu começo a perceber que houve uma série de lugares ou de não-lugares nos quais eu me enfiei que começaram nesses primeiros anos de vida, desde os manuais escolares que não trazem diversidade - não só nas ilustrações. Eu não cresci com bonecos com a diversidade dos meus livros. Agora sei que já existe alguma preocupação a esse nível, mesmo assim residual, mas existe. Na minha altura não existia, ponto. E quando nós não nos vemos lado nenhum, nós começamos a desenvolver uma série de estigmas.

Há um processo de não-aceitação da tua pertença porque tu começas a percecioná-la de alguma forma como sendo inferior. Porque na escola, quando apareces, apareces numa posição de inferioridade ou de subjugação como se não tivesses autodeterminação como se não tivesses uma história contada a partir do outro - tanto na escravatura como na questão do colonialismo. Esta narrativa de inferiorização é transmitida portanto mesmo que não, que a não seja dita textualmente que ninguém nos diga nos diga porque são inferiores etc e tal. Toda a mensagem vai nesse sentido. E quando eu começo a ter estas tomadas de consciência eu começo a refletir sobre o que é que eu posso fazer para alterar esse estado, esse paradigma. Começo pela questão dos livros infantis, que me era se calhar mais fácil, portanto, vou escrever aqui qualquer coisa que permita ocupar esse lugar que eu não tive na infância, mas que quero que os meus sobrinhos tenham. Nessa altura começo a fazer contactos para perceber se era algo que eu não estava a ver ou se até existiam livros mas que por eu nunca ter ido à procura com essa preocupação não os encontrava e as pessoas com quem ia falando.... mães, pais diziam-me não, não há...não não há...não não há.

Na altura em que eu fiz este levantamento na altura existia a Doutora Brinquedos da Disney só, com cor, mas lá está, não existia uma construção identitária à volta do que é aquela identidade representa do que é aquela cor da pertença a africana enfim nada disso estava presente. Eu comecei a trabalhar por aí. Sendo que numa fase inicial também por uma questão de conforto, tendo em conta a especialização jornalística, era muito mais fácil a partir de um lugar mais documental que eu queria basicamente pegar em histórias tradicionais dos PALOP e dar-lhes uma roupagem contemporânea. Portanto, contar a história com outro ambiente e depois enquadrar aquilo naquele país. Portanto, inventei uma história peguei os personagens que depois continuem noutras histórias. E trouxe uma componente que eu acho que é fundamental também. Além da criação dos heróis com os quais as crianças negras se possam identificar. Há aqui a questão da pedagogia associada à presença africana e eu queria trazer estes elementos que mostrem uma África que se celebra, uma África que faz.

E justamente quando estou à procura da ilustradora, eu senti uma dificuldade tremenda em chegar a Irene Filipe Marques que foi quem ilustrou o livro. E eu só chego a Irene porque ela tem uma empresa e portanto, com um site, com Instagram com o Facebook, portanto tem presença digital. Eu já tinha começado a refletir sobre essas questões dos lugares e porque é que em vez de tantas...tantos profissionais negros no espaço público. Enfim quando eu digo espaço público estou a falar sobretudo meios de comunicação social.

Porque é que eles não aparecem. Eu comecei a pensar, mas quer dizer se eu à minha volta tenho uma série de profissionais qualificados nas mais variadas áreas. O que é que explica este apagamento esta invisibilização. E começo a pensar que eu queria ter tido mais escolhas para além da Irene como é óbvio, adoro o trabalho da Irene. Gosto imenso do resultado mas eu gostava de ter tido outras opções até por uma questão de uma série de variáveis que eu gostava de ter tido a possibilidade de comparar e não tive porque não encontrei mais ninguém. Então, a minha busca ou a minha chegada ao Afrolink daí: parte desse lugar de procura, de perceber esse vazio e começar a explorar essa tal cultura da ausência. Porque é que isto acontece de facto não existem profissionais naquelas áreas. E eu começo, certa de que existem, que há um problema de presença digital por um lado e por outro lado também tinha essa consciência logo à partida que muitos de nós que conseguem fazer a sua formação académica e depois não têm sequer uma oportunidade para experimentarem o que é trabalhar na área nem sequer uma oportunidade.

RUTE CORREIA (narração): Esta falta de modelos aspiracionais alimentada em boa parte pela comunicação social reflete-se nas escolhas dos próprios jovens, que acabam condicionados pelos espaços onde encontram os seus semelhantes, conforme sublinha a investigadora do Instituto de Ciências Sociais, Helena Vicente.

HELENA VICENTE: Se pensarmos em relação à musica em relação ao rap mais exclusivamente o que eu vejo se calhar as pessoas que fazem música neste caso vão ter a sua experiência e sua vivência nos bairros em que as pessoas chamam de bairros vulneráveis. Alguns bairros sociais...então. O fato de elas estarem nestes espaços em que também nesses espaços já é um palco já é a origem de todos os movimentos que estavam mais para trás e já há pessoas que fazem a sua carreira nessa área da música. Se calhar talvez seja por aí que existam mais pessoas, isto porque isto na lógica dos modelos se nós temos já uma tradição, chamemos-lhe assim, em que vemos vários rappers negros, temos depois uma legião de fãs que vão querer ser como aqueles rappers e então vão querer lutar lutar no sentido de trabalhar arduamente trabalhar arduamente para chegar àquele posto e conquistar uma base de fãs... e entrar no mesmo espaço dentro das rádios e questões desse género. Tanto tem modelos então vão querer ser como alguém e por aí trabalham arduamente para chegar àqueles espaços.

Nós já começamos a ver em termos da realidade portuguesa um número significativo de principalmente mulheres negras que têm que são youtubers. Então, outras mulheres estão também a fazer trabalhos nesta área, porque veem exemplos que conseguem perceber que ali há um mercado consegue perceber que as suas vivências e os seus conhecimentos também é muito importante porque muitas vezes acabamos por ficar apenas ao nível das perceções mas não é só das perceções que nós estamos a falar aqui. Estamos a falar de conhecimento, que estas mulheres de várias áreas vão fazer então trabalhos nas suas áreas mas utilizando o YouTube coisa que não acontece na televisão. É necessário muito para chegar à televisão e se calhar é essa falta de role models. Não é? De modelos a seguir aspirações futuras que falta. Portanto, tanto mas vemos que se calhar há uma abertura no desporto porque as pessoas porque o país quer que Portugal vá mais longe. E então usam estes miúdos também para dizer que existem pessoas negras em Portugal. Olha, temos aqui este exemplo. Temos no atletismo temos aqui no futebol então se calhar existem mais facilidades mais facilidades. Não digo que seja fácil. Não estou aqui a menosprezar o trabalho destas pessoas e desses atletas, mas eles têm mais facilidade por parte das instituições para que estas pessoas consigam singrar na sua carreira artística ou na sua carreira na área do desporto.

Mas não existem outros modelos noutras áreas ou pelo menos visíveis. Não é para que as crianças que estejam em causa digam eu quero ser como esta pessoa não é, porque por exemplo nós vemos os programas de daytime... Estes programas, os seus convidados ou os profissionais que vão lá falar nas várias áreas normalmente são portugueses brancos. Então, nós também temos de pensar como instrumentalizar e como instrumentalizar estes estes programas que até têm estes horários que até a visibilidade para darmos oportunidade e espaço para que outras pessoas possam estar lá. Eu acredito que existam nutricionistas, advogados que existam pessoas para além de futebolistas e rappers negros que estejam a fazer sucesso e estejam bem nas suas carreiras em Portugal. Nós não vemos estas pessoas o facto de não vermos estas pessoas vai fazer com que não exista também uma vontade de ser como aquelas pessoas, não é? Muitos dos trabalhos que estão a ser desenvolvidos agora em termos de ativismo tem muito a ver com criar plataformas que digam que estas pessoas existem e que mostrem ao público, quer seja negro português ou branco português, que temos profissionais de várias áreas e com profissionais competentes para que não fique só na imaginação, onde o negro faz parte da população portuguesa ou do imaginário do que é português quando é futebolista ou quando é músico. Portanto, nós temos que desconstruir e reconstruir este imaginário do que é ser português para outras áreas. Portanto, temos de dar visibilidade a estas pessoas aquelas pessoas que estão em casa saibam que não é que estas pessoas existem e que elas podem ser também advogadas médicas ou que aquelas quer que seja que não seja só rap e desporto.

CARLOS PEREIRA: Agora sim, respondendo à tua questão de porque é que eu me sinto livre em cima do palco, porque em cima do palco posso dizer isto tudo sem que ninguém me diga nada, eu não posso obviamente se tiver alguém a pagar-me, não posso dizer tipo...as coisas que me apetecer passa sempre pelo escrutínio de alguém, em cima do palco? Em cima do palco estou-me a cagar, quantas vezes me disseram "não fales disso". E dizem-me "essas pessoas estão ai para se distrair", queres te distrair vai jogar padel, não te feches numa sala com um jovem negro com um microfone na mão, achas que eu tendo oportunidade de dizer as coisas que me afligem, não vou fazê-lo? Pá, não brinques comigo caramba.

Sabes...uma vez um gajo, um produtor disse me isto, eu acho esta historia hilariante, que é, disse me assim, eu falei da questão racial de toda a questão do racismo e não sei que...pá, se calhar umas piadas assim mais coiso...se calhar não convem repetir aqui, no final o produtor veio ter comigo e disse me assim "Quem é que tu pensas que és para dizeres esse tipo de coisas, estas pessoas pagaram para não ter de ouvir falar de racismo", agora penso...caramba, pagaram para não falar de racismo...sabes quanto? 12 paus, sabes quanto é que está a valer não falar de racismo...12 paus caramba, que mundo é este, em que as pessoas pagam para não ouvir falar de racismo, quanto é que é? 12 paus....sendo assim também eu pago caramba, assim também eu pago, se é 12 paus para eu não ouvir falar… Mas a minha sorte é que há semanas convidaram me para o Festival Política, e disseram-me “mas podes falar de racismo. o caché é esse”. E eu "foda-se, caramba", então eu paguei isto para falar de racismo, até que a voz me doa, eu hei-de falar muito mais. Se o cachet é esse para falar e o para não falar são 12 paus para o publico, desculpa. Pá, não brinquem comigo, há esta coisa que é, se as pessoas...o mundo já é chato o suficiente. Há e o gajo até disse "É por gajos como tu que o racismo não acaba". E eu pensei "é verdade, é por gajos como eu que o racismo não acaba, até porque se mandassem os pretos todos embora o racismo não havia". Mas lá está, é o gajo do dinheiro, e como é o senhor do dinheiro tu não podes levantar o dedo, mas depois ele diz-te assim "é que eu até nem vejo cores", epá, estavas ai tão bem, caramba…

Mas pronto, sei lá...Sinto-me livre em cima do palco e é isto, no final, podem me dar na cabeça a vontade, no início...podem me chamar a atenção a vontade, quando eu estou lá dentro… Ah, sou eu e eles só, sou eu e eles só.

RUTE CORREIA (narração): Carlos Pereira está, neste momento, a trabalhar em Barman, uma série em que se desdobra entre co-argumentista e protagonista. A realização está a cargo de Luís Almeida, também negro.

CARLOS PEREIRA: E...fizemos, eu fiz com uns amigos meus na escrita, fiz com uns amigos meus na produção, e quem realiza a série é Luís Almeida, que é um jovem realizador, que é um amigo meu, que dizia-me sempre...ele queria ser editor, mas que nunca o deixavam editar as coisas que ele queria então ele foi para a realização para poder ser ele a editar as suas próprias coisas. Então, nós juntámo-nos à nossa vontade e fizemos, a série chama se Barman e nós olhamos para essa série que nos é tão querida e pensamos “Caramba, conseguimos, vais ter uma coisa em Portugal que foi realizada por um negro e protagonizada por um negro” tipo, tens um protagonista negro e um realizador negro. E sei lá, um gajo pode cair um bocado nessa. Podes tentar vender a coisa dessa forma e as pessoas podem pensar - lá está ele nesta tentação de é só...é sempre tudo sobre a questão da cor é tudo sobre a questão de ser negro, é tudo sobre a questão de racismo. Mas não é fazer disso uma questão, nem tudo tem que ser uma questão, nem tudo tem de ser uma questão, se não fosse a partir de uma questão. Não somos nós que estamos a fazer disto uma questão, se isto já fosse uma coisa normal, já seria uma coisa normal, para nós...mas nós sabemos o pais em que vivemos e o quão anormal é isso,isto é uma série que é tipo...yah, é escrita por um negro e mais 3 gajos e +e realizada por um negro, e isso é uma coisa. Isso é sempre uma notícia, porque é o país que temos. O país real é esse. Depois há o país do senhor do dinheiro, o país do senhor do dinheiro há de ser outro, mas o país real é este, é um país em que tu tens N negros, tens jovens negros que têm sonhos e têm ambições e que ligam a televisão e não estão lá pessoas e querem fazer um filme e não sabem como, ou querem fazer… Tem que ir lá o senhor do dinheiro ao bairro fazer um filme com eles, sobre eles mas com eles, e o dinheiro vai para o senhor do dinheiro na mesma. E quando eles fazem um filme sobre eles, com eles e querem reclamar para eles esse estatuto, mas se o dinheiro for do senhor do dinheiro… o senhor do dinheiro dita as regras.

RUTE CORREIA (fecho): A série Barman, de Carlos Pereira, Luís Almeida e companhia, deverá chegar à RTP Play entre setembro e outubro deste ano.

Este foi o primeiro episódio da série Memória Coletiva. Contou com a edição e produção de Ricardo Correia; argumento e realização, minhas, e voz adicional de Tiago Crispim. A música é de Vasco Completo e de Roger Plexico; e está disponível na Monster Jinx; os créditos detalhados e as ligações estão nas notas deste episódio.

Um agradecimento especial ao Diogo Constantino, ao Allmighty, ao Carlos Ferreira, ao Tiago Maurício e ao doador anónimo – assinantes maxi e doadores extraordinários do Interruptor. Se tal como eles quiseres ajudar-nos a chegar mais longe, podes partilhar este episódio nas redes sociais ou contribuir financeiramente, a partir de apenas €2/mês. Passa pelo nosso site: interruptor.pt/contribuir.

O meu nome é Rute Correia e este é o podcast do Interruptor. Obrigada por estares desse lado e até breve.

Quando o racismo é normalizado, qual o impacto na vida de milhares de africanos e afrodescendentes? Neste episódio, analisamos a experiência atual do pós-colonialismo em Portugal. Falamos das mortes de Alcindo Monteiro e de Bruno Candé, e da ineficácia de um sistema que castiga mais do que protege. E visitamos um dos casos de maior vergonha para o jornalismo nacional: o pseudo-arrastão de 2005.

Ouvimos Carlos Pereira (humorista e repórter do 5 Para a Meia-Noite), Vítor Sanches (fundador do projeto e loja cultural Dentu Zona), Paula Cardoso (fundadora da plataforma Afrolink) e Helena Vicente (investigadora do Instituto de Ciências Sociais).

Esta é a segunda de duas partes da série Memória Coletiva focadas no colonialismo português (ouve aqui a primeira). Contou com a edição e produção de Ricardo Correia; argumento, realização e voz de Rute Correia. Voz adicional de Tiago Crispim.

Leituras e referências adicionais

Créditos