Arqueologias da Hospitalidade | Entrevista a Rui Gomes Coelho
De Trás-os-Montes à Croácia, há uma recuperação em curso de exemplos de acolhimento e receção de pessoas em movimento. A Europa mais rica de sempre não pode ser uma fortaleza.
Este trabalho foi originalmente publicado no BUALA, em janeiro de 2021. É a terceira de três entrevistas integradas no projeto “Arqueologias da Hospitalidade”.
Esta entrevista surgiu de um projeto apresentado na Culturgest chamado “Arqueologias da Hospitalidade” que visa apresentar a vida dos migrantes de uma perspetiva arqueológica, apresentando-os como humanos e não como ideias pré-concebidas de vítimas frágeis que nos foram transmitidas pelos meios de comunicação social.
Este projeto conta com os investigadores Yannis Hamilakis, Rachael Kiddey e Rui Gomes Coelho. Na última de três entrevistas, falámos com Rui Gomes Coelho sobre o impacto da arqueologia na contemporâneidade.
Pode explicar-nos o seu background profissional?
Sou arqueólogo e fiz a minha licenciatura e mestrado na Universidade Nova de Lisboa, na FCSH. A licenciatura foi em História, Variante de Arqueologia e depois o mestrado em História e Arqueologia. Na altura eu estava interessado em questões relacionadas com o colonialismo moderno.
Depois de completar o mestrado estive vários meses a fazer arqueologia em Trás-os-Montes. A seguir decidi ir para o Brasil, onde estive cerca de um ano. Foi nesta altura que realmente consegui descobrir os contributos social e político que poderia prestar enquanto arqueólogo.
Uma das razões que me fez enveredar por esta área tem que ver com o meu percurso pessoal e familiar. Fui a primeira pessoa da minha família imediata a ir para a universidade, pois só a partir da minha geração é que esta possibilidade começou a ser equacionada. A minha família é do Alentejo e sempre trabalhou no campo ou em fábricas, então eu comecei a estudar arqueologia para tentar perceber como é que se tinham gerado as desigualdades que fomentavam a marginalização da minha família, e outras como ela, no panorama económico-social do país; como é que a desigualdade social tinha aparecido.
Quando cheguei ao Brasil todas estas ideias que pretendia desenvolver se articularam de forma mais concreta, uma vez que consegui encontrar investigadores que estavam há muito tempo a trabalhar neste tipo de temas e que encaravam a arqueologia como mais um instrumento para lidar com estes problemas e encontrar soluções. No fundo, para explicar como é que isto foi possível, como é que as desigualdades apareceram, mas também como é que as ciências sociais poderiam contribuir para resolver esse tipo de desigualdades ou, melhor, criar uma sociedade mais justa, mais igualitária. Claro, o Brasil tem uma escala que Portugal não tem, e tive oportunidade de lá conhecer muitas pessoas com interesses parecidos com os meus e que me ajudaram a trilhar esse caminho.
No seguimento desse contexto fui para os EUA para fazer o meu doutoramento na Universidade de Binghamton, onde conheci Randall McGuire, que é alguém com quem convirjo nas origens sociais. Em determinado momento decidiu trabalhar sobre arqueologia histórica precisamente para encontrar respostas a questões que tinham que ver com o seu próprio percurso pessoal e familiar.
No meu doutoramento trabalhei sobre a sociedade escravista do vale do Paraíba, Rio de Janeiro, durante o século XIX. Olhando para as fazendas construídas naquele período, tentei entender como é que elas constituíram um laboratório sensorial do mundo em que vivemos. Alguns historiadores, especialmente Dale Tomich, chamaram “Segunda Escravidão” a este contexto. É uma fase da sociedade escravista que se prende com uma grande industrialização do trabalho, um incremento tecnológico, das técnicas de gestão do trabalho e das pessoas escravizadas. Tudo isto convergiu na produção maciça de café para o mercado mundial, numa escala que até então não existia. Foi esta transformação que permitiu que o consumo de café se tenha banalizado, a ponto de a nossa sociedade quase se ter esquecido da ligação desta bebida ao trabalho de pessoas escravizadas.
Encaro o trabalho que realizo e os temas pelos quais me interesso numa perspetiva educativa, e tenho a consciência de que a formação realizada vem influenciar e enformar aos temas que ensino e a forma como o faço, numa perspetiva de transformação da sociedade. O meu interesse pelo passado liga-se ao meu interesse pelo presente; tento imaginar como é que o presente se tornou possível, quais foram as circunstâncias que tornaram possível o presente tal como nós o vivemos. Para poder entender isso é necessário ir lá atrás e avaliar que circunstâncias materiais contribuíram para o momento presente. Interessa-me entender as origens do mundo atual quanto às suas dinâmicas sociais, desigualdades, e realidades culturais e tentar entender que outros presentes teriam sido possíveis.
Quando olhamos para trás tudo nos parece inevitável. No entanto, para as pessoas que viveram há 100, 150 anos, as coisas poderiam ter sido muito diferentes. Basta pensarmos que eles combateram guerras que hoje nos parecem impossíveis. A partir deste exame de como as coisas aconteceram e as suas possíveis alternativas, podemos fazer o mesmo raciocínio para as condições existentes no momento presente e tentar entender que possibilidades podem ser geradas a partir das mesmas.
Sente que foi toda esta ligação e conhecimento do passado que o levou a envolver-se no projeto “Arqueologias da Hospitalidade”?
Importa esclarecer que “Arqueologias da Hospitalidade” não é só um projeto, mas sim, várias conversas, várias perspetivas que convergem.
Uniram-se vários investigadores, portanto?
Sim, para discutir o tema das migrações contemporâneas. Este tema já me interessava durante o meu doutoramento sobre a escravidão. A escravidão moderna é o maior processo de migração forçada de toda a história. Estamos a falar de milhões de pessoas que foram obrigadas a deixar as suas casas, o lugar onde cresceram e viveram para trabalharem para outros e serem submetidas às formas mais extremas de sofrimento e desumanização. Comecei a pensar sobre o tema das migrações contemporâneas por dois motivos essenciais. Por um lado, através do meu interesse inicial pela migração forçada que está detrás da escravidão e configura de certo modo a modernidade, o nosso presente. Por outro lado, o meu interesse relaciona-se indiretamente com o investimento pessoal na arqueologia como modo de inquirir acerca do meu próprio passado, e pelo passado da minha comunidade política. Na minha família há pessoas que tiveram de deslocar-se em circunstâncias muito adversas. Por exemplo, um tio que se exilou no final da ditadura, que teve de fugir por razões políticas. A deslocação da minha família do Alentejo para os subúrbios de Lisboa também aconteceu por motivos que escaparam essencialmente ao seu controlo. Ainda que tenha acontecido dentro das fronteiras do Estado-nação português, supostamente num contexto de paz, na prática foi obrigada. Se as pessoas não queriam ser miseráveis tinham que se ir embora. São evidentemente fenómenos migratórios muito distintos. No entanto, entrelaçam-se enquanto produtos da modernidade ocidental, capitalista, e, através de um esforço crítico pessoal, tento desentrelaçá-las enquanto descortino o meu próprio posicionamento como pesquisador.
Este meu trabalho com a arqueologia das migrações tem este pano de fundo, mas também tem se relaciona com uma questão mais geral que eu coloco: qual é a genealogia da crise de acolhimento na Europa, no contexto das migrações contemporâneas? Será que as coisas podiam ter acontecido de modo diferente?
Como arqueólogo, estou interessado na resistência ao nazismo e ao fascismo na Europa, num período da história recente que correspondeu à última grande crise que o continente atravessou, a todos os níveis. O meu interesse começou com um projeto colaborativo que fiz na raia galego-portuguesa sobre a aldeia Cambedo, concelho de Chaves. Esta aldeia acolheu refugiados no final da guerra civil espanhola e foi atacada pelo exército português para desalojar os guerrilheiros galegos que ali tinham sido acolhidos. Comecei a trabalhar recentemente na Croácia, numa aldeia chamada Drežnica que fica nos Alpes Dináricos. Foi ali que se montou uma parte importante do movimento de oposição às invasões italiana e alemã na Segunda Guerra Mundial, funcionando também como área de apoio de retaguarda a civis.
Estou interessado em entender como é que essas pessoas resistiram em contextos repressivos, e que tipo de alternativas é que elas criaram. Para fazer isso, é preciso investigar as condições materiais dessas comunidades, as circunstâncias concretas da vida que as encorajaram a resistir quando na verdade tinham tanto para arriscar. Lembro que estamos a falar de comunidades camponesas nos anos 40, que eram extremamente pobres. Na fronteira de Trás-os-Montes, por exemplo, os níveis de pobreza eram muito elevados até aos anos 70. Estamos a falar de regiões rurais na Europa que eram extremamente pobres e dependiam de uma rigorosa atenção aos ciclos agrícolas. As pessoas tinham o suficiente para se manterem e não podiam arriscar muito. Logo, o que levaria estas comunidades, que tinham tanto a perder, a dedicar-se a causas extremamente arriscadas, ou que nos pareceriam perdidas?
O que fazia com que estas comunidades se mobilizassem contra estas formas de opressão era um dever ético de hospitalidade baseado em relações de parentesco, ou de reciprocidade social muito antigas próprias da sociedade local. As pessoas sentiam que deviam colaborar no apoio a determinadas formas de resistência porque sentiam elas próprias que estavam a ser oprimidas, a ser confrontadas pelo que consideravam serem injustiças. Isto foi muito claro no caso de Cambedo em Trás-os-Montes, onde a antropóloga Paula Godinho foi descortinar uma complexa rede social detrás do apoio local aos guerrilheiros anti-franquistas.
Uma das coisas que eu e os meus colegas percebemos na nossa investigação em Cambedo e Drežnica foi que este processo de resistência ao fascismo e ao nazismo passou também pelo apoio dessas comunidades a estranhos. Experiências que podem ser pensadas à luz do que Jacques Derrida entendeu como “hospitalidade incondicional”, isto é, uma abertura radical a quem chega para além de todo o cálculo.
Como é que a arqueologia pode contribuir para conhecer essas experiências?
Como arqueólogos, a primeira coisa que podemos fazer é desmontar o mito de que hoje não há recursos para todos, e que por isso não podemos abrir-nos a ninguém. A arqueologia mostra-nos que, mesmo em tempos miseráveis, foi possível fazer diferente. Hoje temos mais opções para fazer esse acolhimento do que as que os nossos antepassados tiveram.
No caso de Cambedo existia o trânsito constante de pessoas, refugiados da guerra civil espanhola e do franquismo que procuravam refugiar-se em Portugal. Seguiam alguns para o Porto, e depois para as Américas. Na aldeia ainda se contam histórias sobre isto. Um dos testemunhos materiais mais interessantes deste contexto é o refúgio das Chóias, numa serra sobranceira a Cambedo. Foi-nos dito que ali se abrigavam refugiados, para além dos próprios guerrilheiros. Decidimos escavar esse refúgio, e surpreendentemente não encontrámos nada. Melhor dizendo, encontrámos um lajeado tosco que deve ter servido para tornar o espaço mais confortável. Esta ausência intrigou-nos, mas foi uma revelação também. Na verdade, o refúgio estava vazio porque a sua ocupação era sempre efémera. O verdadeiro refúgio era a própria aldeia, e só em situações extremas é que as pessoas subiam àquele local.
No caso da Croácia, durante a Segunda Guerra Mundial, estamos a falar de guerra total e de uma brutal repressão sistemática que incluiu a prática de genocídio. As vítimas desta guerra fugiam pelas montanhas ao longo da costa do Adriático, em busca de paragens mais seguras. O movimento de resistência jugoslavo, liderado pelos comunistas, foi responsável pela libertação de um país inteiro. Foi o único país europeu em que isso aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, em que as pessoas não precisaram nem dos soviéticos nem dos aliados ocidentais. Durante toda a guerra, os partisans conseguiram ter áreas de território libertado onde as pessoas se iam esconder. Drežnica ficava precisamente numa dessas áreas de território libertado, o que só era possível porque a resistência contava com uma rede de apoio generalizada entre as comunidades locais. As pessoas de Drežnica apoiavam e levavam comida para o hospital que aí se encontrava. Esse hospital recebia não só pessoas da aldeia e soldados, mas também refugiados de guerra, pessoas que estavam em movimento e que tentavam chegar a outro local. Em redor de Drežnica encontrámos uma série de grutas que serviram de refúgio em tempos difíceis. Escavámos uma dessas grutas no verão passado. Essa gruta está associada a histórias do tempo da guerra, e à semelhança do refúgio das Chóias em Cambedo, pouco encontrámos. O refúgio era a própria aldeia, disperso numa constelação de lugares por onde as pessoas circulavam temporariamente.
Observando esse tipo de realidade, comecei a pensar que existia algo realmente muito importante que precisávamos de investigar enquanto arqueólogos. Algo tão importante que nos obriga a refletir sobre a forma como nós, hoje, estamos a encarar fenómenos de migração e a gerar uma crise humanitária no norte global. Trata-se de uma crise de recepção geral, não só na Europa evidentemente. Mas é na Europa, que há cerca de 80 anos tinha no seu seio milhões de “pessoas em movimento”, como diz o Yannis Hamilakis, que a crise humanitária atual nos surpreende mais.
De que forma é que nós podemos aprender com estas experiências? Como podemos encarar essas “pessoas em movimento de uma forma mais coerente com os princípios de democracia ou justiça que tanto propagandeamos na Europa? É este o tipo de questão que norteia o meu trabalho, tanto no Noroeste ibérico como no Norte da Croácia.
Acho que precisamos de diversificar o nosso arquivo de humanidade. Na linha que o antropólogo Michel Agier vem apontando, há que encontrar e recuperar exemplos de acolhimento e receção de pessoas em movimento, sobretudo as que estiveram em situações de crise pessoal, familiar, comunitária. Com isso, podemos ampliar o nosso leque de opções no presente. Pois se as pessoas de há 80 anos atrás, que viviam em condições tão miseráveis, apoiaram como podiam essas pessoas em movimento, então porque é que nós hoje não podemos? Vivemos na Europa mais rica de sempre, apesar de toda a miséria e das desigualdades sociais que aqui existem. É possível que possamos nós próprios correr riscos ao diversificarmos esse arquivo para além daquilo que as políticas de acolhimento oficiais preconizam, para além daquilo que é formalmente sancionado pela União Europeia. Mas se quisermos ser coerentes, então talvez tenhamos mesmo de enfrentar esses riscos.
O Rui questiona porque é que hoje não articulamos melhor essa forma de acolhimento. Talvez isso parta de uma perspetiva muito mais racista na sociedade europeia, não? Poderá ser uma das causas? Gostaria de falar um pouco sobre isso?
Sem dúvida, e por isso vale a pena lembrar como a resistência anti-fascista, na sua diversidade de motivos, formas e representações, dialogou com a resistência ao colonialismo. Não é por acaso que no monumento que celebra a vitória dos guineenses sobre o ataque português a Conakry, em 1970, se lê a inscrição “O imperialismo encontrará o seu túmulo na Guiné”. As palavras foram inspiradas no velho lema da Guerra Civil espanhola, “Madrid será a tumba do fascismo”. O poeta Aimé Césaire, que por acaso ancorou a Negritude numa viagem que fez à Croácia, articulou de forma muito perspicaz as críticas anti-fascista e anti-colonial. Para ele, a emergência do fascismo correspondeu a uma expansão do projeto colonial sobre a própria Europa. Esta ideia frutificou nos movimentos de libertação africanos. Para figuras como Amílcar Cabral, a libertação era simultaneamente anti-fascista e anti-colonial e nela convergiam tanto africanos como europeus.
Não podemos entender a resistência às ditaduras ibéricas ou à ocupação da Croácia da Segunda Guerra Mundial, sem a pensarmos no quadro de uma crítica mais vasta à modernidade ocidental e em como esta se impôs através do fascismo e do colonialismo. A crise humanitária atual é um palimpsesto dos legados do colonialismo europeu em várias partes do mundo e na própria Europa. É por isso que quando insistimos em diversificar o arquivo da humanidade de que falava há pouco, temos de ter em conta a desconstrução desses legados. Tudo isto é trabalho arqueológico.
Qual é o principal objetivo do seu atual projeto?
O trabalho em Cambedo já terminou. O projeto na Croácia, que se chama “Drežnica, Traços e Memórias 1941-1945” e é coordenado pela Sanja Horvatinčić a partir do Instituto de História de Arte em Zagreb, é um projeto interdisciplinar que congrega pessoas de áreas muito diferentes: história de arte, arquitetura, artes visuais, história e antropologia cultural, para além da própria arqueologia. Apesar de ser tão diversificado, convergimos todos em alguns objetivos gerais.
Por um lado, queremos criar o arquivo de experiências que eu mencionava há pouco. Experiências que nos ajudem a configurar um presente que seja mais solidário e justo. Queremos entender especificamente como é que funcionou o apoio dessas comunidades a pessoas em movimento, refugiadas e não só, e como é que estas pessoas foram apoiadas localmente para conseguirem chegar a lugares seguros. Observando os gestos e movimentos das pessoas que ajudavam quem estava em crise, mesmo tendo pouco ao seu dispor, é algo que nos ajuda a refletir sobre o presente e sobre o futuro.
Por outro lado, queremos gerar massa crítica para contrariar o revisionismo histórico que existe atualmente na Europa no que toca ao passado Nazi e fascista. Neste momento há um crescimento exponencial da extrema-direita por toda a Europa e no norte global. Este crescimento fundamenta-se muito na construção de determinadas narrativas nacionalistas, frequentemente racistas, que não têm qualquer fundamento histórico. Como é que nós podemos contrariar essas narrativas? Um projeto como este permite ancorar uma luta aparentemente abstrata num contexto específico, onde as experiências das pessoas durante a Segunda Guerra Mundial são palpáveis.
É importante dizer que não é um projeto que se limita a documentar coisas do passado para depois as estudarmos. Pelo contrário, é um projeto performativo no sentido em que nos inspiramos nas práticas de cuidado documentadas em Drežnica, para agirmos de forma concreta no presente e de acordo com as expetativas da comunidade. No ano passado andámos a lavar campas esquecidas de partisans num cemitério local, e um dos nossos colegas, Matija Kralj, fez um filme sobre a interseção das experiências da Segunda Guerra Mundial e das migrações atuais na região. Este ano estivemos a escavar numa gruta que serviu de abrigo a refugiados de guerra e fomos visitados pelo padre ortodoxo da aldeia, que benzeu o sítio. Dias depois, o arquiteto Emil Jurcan trouxe uma placa para substituir a placa comemorativa do hospital partisan que tinham roubado há muitos anos. É uma praxis na medida em que vamos pensando e definindo o projeto em função das circunstâncias materiais e subjetivas em que o executamos.
De entre vários objetos estudados, o Rui destacou um frasquinho ainda selado que continha adrenalina. O que é que o cativou no mesmo?
É um objeto muito simples que encapsula as experiências de hospitalidade de que tenho estado a falar, e que importa lembrar no meio da pandemia que estamos a viver.
Há pouco referi um hospital em Drežnica que foi queimado e destruído várias vezes durante a guerra. Na verdade, esse hospital era um complexo de estruturas que incluíam uma gruta, a que chamámos de “gruta-hospital”. A equipa encontrou-a no ano passado. A entrada é estreitíssima, mas dá acesso a uma galeria bastante grande onde os partisans tinham montado uma espécie de enfermaria onde se punham os pacientes que estavam mais debilitados, ou que tinham doenças infeciosas. Lá dentro havia ainda restos das camas, em madeira, e bastante material médico capturado ao exército italiano. Esse frasquinho foi encontrado ainda selado! Isso gera curiosidade por si só. Quando recebemos os resultados do laboratório a revelar que a substância era adrenalina, o frasco tornou-se ainda mais interessante. A adrenalina era injetada no coração de pacientes que tinham o sistema cardíaco a falhar e naquele contexto, aparentemente, o uso desta substância estava associada a pacientes de tifo. O tifo é uma epidemia que aparece em guerras, em situações de fuga, exaustão e exposição a elementos adversos à saúde humana que levam à desnutrição e ao enfraquecimento imunitário.
Esta descoberta serviu para percebermos melhor as redes de solidariedade que mantinham a resistência partisan, e que davam assistência a pessoas em movimento. Os médicos e as enfermeiras que trabalhavam no hospital que estudámos eram elas próprias refugiadas. Vinham de diferentes partes dos Balcãs e tinham diversas religiões, desde italianos, a checos, croatas e sérvios. Tinham fugido por causa das perseguições políticas, étnicas e religiosas.
Uma das enfermeiras ainda está viva. O seu nome é Vera Švabenic e nasceu numa família judia de Zagreb. Conseguiu fugir para os territórios já libertados pelos partisans e tornou-se enfermeira em Drežnica. O papel destas pessoas numa guerra total, enquanto guerrilheiros e profissionais de saúde, era derrotar os agentes do fascismo, quer fossem humanos ou não-humanos. O capitalismo teve no fascismo e na Segunda Guerra Mundial um dos seus campos de experimentação mais violentos e mortais, e epidemias como o tifo devem ser vistas precisamente nesse contexto. É importante lembrar isto porque pandemias como a da chamada “gripe espanhola” e da COVID-19, mas também surtos epidémicos mais localizados como os do ébola em África, são também o produto de experimentações. É o sistema-mundo capitalista a expandir os seus limites, a gerar pressão sobre o planeta e as suas múltiplas formas de vida. Médicos e enfermeiras como Vera eram bio-partisans na guerra de cuidados que se combateu nas montanhas de Drežnica.
Os objetos que fomos encontrando, como o frasquinho de adrenalina, facilitaram-nos estas reflexões. Este é um dos aspetos mais importantes da arqueologia, que não consiste só na documentação e estudo de acontecimentos passados. É também uma performance sobre o presente, que resulta da interpelação de coisas que encontramos enterradas, que nos faz pensar e que nos obriga, muitas das vezes, a mudar de ideias sobre o mundo em que vivemos.
Os seus colegas mencionaram o conceito “arqueologia contemporânea”. O Rui também se posiciona nesse campo?
Sim, sem dúvida. Eu trabalho sobre a arqueologia do mundo moderno, dos últimos 500 anos, e interesso-me particularmente sobre o que está a acontecer agora.
Acredita então que este projeto adicionou ainda mais credibilidade à arqueologia contemporânea?
Sim. Se pensamos na arqueologia enquanto conjunto de técnicas e de teorias, enquanto disciplina que serve para estudar a humanidade através da cultura material, independentemente do período histórico, porque razão a arqueologia do passado mais recente não seria credível? É uma crítica ideológica, naturalmente. Há muitos arqueólogos e historiadores que pensam que não se pode estudar nada que seja recente, ou que nos envolva politicamente enquanto agentes de investigação. São os mitómanos da objetividade científica. A ideia de que nos podemos dissociar enquanto cientistas ou agentes de investigação do objeto de investigação é também ela um posicionamento político da modernidade que vivemos, e tende a ser arbitrária. Ao fim ao cabo, essa mitologia tem o efeito perverso de bloquear a reflexão crítica sobre as práticas disciplinares, as suas implicações éticas, por aí fora. A arqueologia que eu pratico, independentemente do lugar, é assumidamente política e procura responder a questões políticas, no sentido em que são questões que importam à vida em comum no presente.
Uma vez que o seu projeto não está concluído, pergunto-lhe se nos pode revelar o grau de impacto que o projeto irá ter no panorama arqueológico, bem como nas comunidades.
O projeto na Croácia parte de interrogações da própria comunidade, e neste sentido já está a ter um impacto. Ou seja, as pessoas em Drežnica têm questões sobre o seu passado que gostariam de ver respondidas, e representam a história de formas que, em alguns casos, nada convergem com as narrativas hegemónicas e oficiais que se desenharam desde os anos ’40. O nosso trabalho faz-se em diálogo com a comunidade. A arqueologia serve para fazer uma ancoragem material, visibilizar as histórias em que as pessoas estão interessadas.
A comunidade de Drežnica é maioritariamente sérvia, faz parte da minoria sérvia da Croácia. Depois das Guerras dos Balcãs nos anos ‘90, e de todas aquelas tensões étnicas, este projeto é encarado localmente como uma forma de renovar a visibilidade da comunidade no contexto da Croácia enquanto estado-nação. É também por causa disso que o projeto tem recebido tanta atenção.
Este é o tipo de projeto que tem mais impacto na sociedade, de um modo geral, do que propriamente na comunidade científica. Ou seja, através do nosso trabalho nós trazemos visibilidade a histórias que eram ocultadas ou mal conhecidas . Então, por exemplo, quando a nossa equipa começou a trabalhar em Cambedo no verão de 2018, o projeto teve uma grande atenção mediática que não é tão comum noutros projetos arqueológicos, apesar de serem também muito importantes do ponto de vista científico. Fomos visitados por jornalistas de vários meios nacionais e tivemos repercussão internacional. Isto deve-se precisamente ao questionamento de narrativas históricas a que fomos obrigados a acostumar-nos, e à diversificação do arquivo da humanidade que eu referi antes. A arqueologia contemporânea facilita uma reflexão sobre a sociedade em que vivemos, e mostra que é possível pensarmos numa Europa diferente. Os media normalmente retratam a Europa como um continente fortaleza e ajudam a naturalizar uma ideia que é imposta a partir da União Europeia e dos governos dos estados-membros. Apresentam as pessoas que chegam às praias da Europa como estranhos, como gente radicalmente diferente que deve ser formalmente gerida e eventualmente expulsa.
O que nós mostramos é que não, nada disto é inevitável e não é preciso irmos buscar histórias muito antigas. Estamos a trabalhar experiências do tempo dos nossos pais e avós, que nos mostram precisamente que é possível ter uma Europa diferente. Essas alternativas existiram muito recentemente, e em circunstâncias muito difíceis. Nós temos de prestar atenção a essas histórias e trazê-las de novo para o presente, mostrar que é possível termos um futuro diferente, um futuro em comum.
Alícia Gaspar
Licenciada em Estudos de Cultura e Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Procura interligar vários tópicos de índole social contemporânea com a área digital, nomeadamente o racismo, o feminismo e a comunidade LGBTQ+. Atualmente encontra-se a concluir o seu mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação no Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE.
Rui Gomes Coelho
Trabalha sobre arqueologia do passado recente. Os seus interesses focam-se na constituição sensorial de modernidades alternativas, e em comunidades que mobilizam a cultura material contra abordagens nacionalistas do património cultural. Tem colaborado em projetos arqueológicos nos EUA, Portugal, Brasil, Alemanha, Espanha, Croácia e Guiné-Bissau. As suas publicações mais recentes incluem o ensaio “The Garden of Refugees” [O Jardim dos Refugiados] no volume The New Nomadic Age: Archeologies of Forced and Undocumented Migration [A Nova Era Nómada: Arqueologias da Migração Forçada e Indocumentada], editado por Yannis Hamilakis, 2018 e o artigo “An Archaeology of Decolonization: Imperial Intimacies in Contemporary Lisbon" [Uma Arqueologia da Descolonização: Intimidades Imperiais na Lisboa Contemporânea], publicado no Journal of Social Archaeology, 2019. É professor no Departamento de Arqueologia de Durham University. Trabalhou no Joukowsky Institute for Archaeology and the Ancient World, na Brown University, e no programa de Cultural Heritage and Preservation Studies no Departamento de História da Arte da Rutgers University. É também investigador da UNIARQ—Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.