Reflexões sobre a identidade imigrante, pássaros e árvores que voam
Quando voamos para outro país, as nossas raízes soltam-se e reencontrar o solo firme da nossa identidade é um exercício constante. Uma crónica de Flavia Doria.
Este é o sétimo capítulo de uma coleção de peças criadas, a propósito do 200º aniversário da independência do Brasil, por pessoas brasileiras que vivem em Portugal. Flavia Doria é uma das cronistas-curadoras que convidámos para escrever e nomear outros autores, numa lógica de descentralização dos discursos e da ocupação dos lugares de fala.
Enquanto buscava inspiração para escrever esse texto, consciente do quanto me custaria mergulhar nesse tema, li a seguinte frase de um conterrâneo que, como eu, também vive em Portugal: “No Brasil, somos alienados da nossa condição de povo subalternizado”. Depois de seis anos vivendo aqui, me pego constantemente imaginando como teria sido se eu estivesse antes inteirada do que significa ser brasileira aos olhos ainda tão coloniais. Seria menos traumático? Teria poupado tempo? Não sei o que eu teria feito diferente se soubesse em 2016 o que eu sei agora, mas acredito que a romantização do sofrimento é desnecessária e podemos aprender com a experiência daqueles que nos antecedem.
Pensando nisso, eu decidi usar esse espaço para tentar traduzir em palavras o meu humilde conhecimento tácito como um contributo para quem sabe ajudar a mim mesma e quem mais precise nesse processo de desalienação.
Um pássaro do sul
Ninguém está pronto para se entender como imigrante. Não existe manual nem vasta literatura sobre como habitar esse conceito tão artificialmente concebido pelo homem quanto as fronteiras, políticas e burocracias que o sustentam. Números de identificação fiscal, cópias autenticadas, pastas e mais pastas com uma floresta inteira transformada em documentação não são suficientes para resumir a experiência de ser percebido como tal.
Antes de avançar, sinto a necessidade de esclarecer que nem todo mundo que muda de país é imigrante. A linguagem importa e a maneira como usamos essa palavra hoje em dia reflete dinâmicas geopolíticas como a dominação global do sul pelo norte e a estratificação social por classes. O imigrante é quase sempre alguém que migra do sul para o norte, ou de um país com menos recursos econômicos para um em melhores condições. É aquela classe de pessoas que é referida com desprezo, ódio ou pena na mídia; e lembrada pela sua precariedade e vulnerabilidade. Pouco temos em comum com um expatriado, por exemplo. O expat, como gostam de dizer os gringos, reafirma na sua escolha de palavras a lembrança de que ser estrangeiro só é um problema quando nascemos no hemisfério ou na classe errados.
Eu sempre soube que quando somos sul temos uma linha do equador que constantemente nos empurra para baixo. Uma margem desenhada por outrem através de um contexto de exploração que é constantemente atualizado pelo capitalismo global.
Tive a sorte de ter uma educação libertária que me fez desde cedo saber que o nosso melhor produto é “tipo exportação” enquanto comemos veneno; que a nossa terra, água e ar são contaminados por empresas estrangeiras para que democratas moderados do norte possam seguir com a agenda verde em seus territórios; que criamos dívidas com eles para sair da pobreza que eles mesmos nos infligiram. O que eu nunca soube é que essa linha também está ao redor do nosso corpo e nos acompanha quando saímos da América do Sul.
Um dos meus poemas favoritos, que foi escrito no exílio. Só um poeta brasileiro exilado durante a Ditadura Militar poderia rimar azul com cu e ficar uma beleza. Mas a verdade é que ainda hoje as palavras em Poema Sujo, do Ferreira Gullar, me acompanham.
"O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
…
a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que uma pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que uma pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa"
Essa linha que eles desenharam na nossa terra e que também foi desenhada no nosso corpo parece aquela dos seriados de TV quando acontece um crime e a polícia contorna a vítima com giz branco. Com alguns centímetros de folga do nosso corpo, ela é uma aura sombria que eles enxergam antes mesmo de nos enxergarem. Assim se reconhece um imigrante; de longe. Talvez essa fosse a primeira lição que eu gostaria de ter recebido mais cedo: carregamos nossa árvore quando voamos - ainda bem.
Enraizar
Quando eu me mudei, durante anos, fui sempre a única brasileira nos meus círculos sociais. Eu tive o privilégio de ter diversas pessoas bacanas (mesmo fixes!) ao meu lado, amigos e familiares do meu companheiro, e, por vezes, achava maravilhoso estar cercada exclusivamente de portugueses. Eu acreditava estar vivendo uma verdadeira imersão cultural e andava preocupada demais com as coisas novas que estava aprendendo para notar o que aos poucos eu ia esquecendo.
Foi um início muito difícil. Sobretudo porque eu não conseguia entender profundamente o porquê de tudo que eu vivia e sentia. Me sentia mais sozinha do que eu realmente estava; custei a perceber que nunca teria um currículo aceito da mesma maneira que tinha no Brasil e que teria que me reinventar; me sentia desconectada da minha casa e de tudo ao meu redor. Como muitos outros imigrantes, eu sentia também muita culpa de viver algo impensável para as gerações anteriores da minha família. E um eterno assombro cada vez que sofria algum tipo de xenofobia - e aqui voltamos para a nossa alienação da condição de subalternizados.
Vindo da região central de uma das maiores cidades do país e uma das cidades mais conhecidas do mundo, o Rio de Janeiro, quase tudo em Portugal me parece uma “aldeia”. O choque de ser desmerecida por pessoas que muitas vezes cresceram em cidades tão pequenas e nunca sequer saíram do país onde nasceram foi grande. Mas foi ele que me ensinou uma porção de coisas sobre o que significa ser imigrante em todos os desdobramentos específicos da minha encruzilhada pessoal. A subalterna da cidade grande, mulher cis, branca, com ensino superior, mas sem privilégios suficientes para escapar do sistema que nos empurra a servir mesas e ser humilhada periodicamente nas visitas ao Serviços de Estrangeiros.
Ocupamos diversos lugares ao mesmo tempo e descobrir que aqui eu tinha um novo demarcador social foi a primeira ferramenta para unir com confiança todas as minhas partes em um inteiro. Eu precisei me (re)conhecer para me mostrar, dessa vez consciente, sem culpa ou confusão. O que me lembra Audre Lorde: “Se eu não tivesse me definido para mim mesma, teria sido esmagada pelas fantasias que outras pessoas fazem de mim e teria sido comida viva.” E fui, diversas vezes.
Aos poucos, eu fui criando a minha própria narrativa. Primeiro, quando eu soube que não era nem nunca seria vista igual a uma pessoa portuguesa. Depois, quando eu entendi que eu precisava não só me apropriar dessa identidade-imigrante, mas também reconhecer as necessidades que vem com ela. Eu precisava enraizar a árvore que eu trouxe comigo. Precisava das comidas, das músicas, das gírias… não porque eu não sabia viver de outra forma (pelo contrário, eu sou o tipo de esponja que absorve culturas em instantes), mas porque eu preciso me lembrar todos os dias de quem eu sou e de onde eu vim. Sem raízes firmes não conseguimos subir, ramificar, expandir. E, por fim, quando entendi que não estava sozinha.
Ramificar
Nada disso seria possível sem a ajuda de outras pessoas. Quem somos nós sem os outros? Existe identidade sem o coletivo?
Tudo que eu vivi, apesar de único, reverbera na vivência de outras tantas pessoas. Um dia eu estava ouvindo alguém que hoje se tornou uma amiga muito querida, em um seminário, falando sobre sua trajetória pessoal desde que tinha saído do Brasil e chorei um choro novo pra mim. O mesmo choro que ainda choro hoje cada vez que leio/ouço relatos sinceros de quem fez esse deslocamento. Um choro de alívio, que só o acolhimento de saber que não estamos sozinhos pode trazer.
Por muito tempo recalquei o meu desejo de me relacionar com quem tinha histórias semelhantes às minhas, com medo de partilhar esse lugar de vulnerabilidade. Mas a verdade é que é que criar esses laços foi - e está sendo - fundamental para absolutamente tudo que eu sou e faço hoje. Em espaços de militância feminista e decolonial eu descobri a força que ganhamos quando criamos um lugar de pertencimento para quem tem as mesmas dores. Eu soube ali que eu queria levar esse sentimento para todas as partes da minha vida.
Atualmente eu trabalho com comunidades. Criando, nutrindo, conectando comunidades. Faço parte de uma comunidade linda, dentro ainda de outra comunidade também linda e gigante de pessoas com desejos e objetivos em comum. Faço mil coisas, mas todas elas convergem para essa imagem de uma aranha tecendo redes ou, para não perder o fio, de uma planta ramificando diversos galhos. Também choro com frequência em reuniões no zoom, em palestras e em eventos presenciais. Aqui o choro é de quem se emociona de fazer parte de algo que toca profundamente o coração e alma. Algo que eu talvez nem saberia que existe em mim se eu não tivesse imigrado.
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Apesar de todas as tentativas do sistema em que vivemos em delimitar a nossa existência, nós migramos. O processo migratório é um movimento tão básico que faz parte da história da evolução humana e de outras espécies animais e, sem ela, diversos ecossistemas deixariam de existir. Se a narrativa do colonizador só valoriza a empreitada bélica da invasão, conquista e dominação; para entender a migração de outra forma precisamos pensar com a mente resiliente de quem busca melhores condições não pela força, mas pela adaptação. É uma jornada silenciosa e introspectiva onde descobrimos quem somos e quem é o outro através de um jogo de espelhos que se deslocam e oferecem novas perspectivas. E novas perspectivas trazem grandes transformações.
Sobre a autora e a ilustradora:
Flavia Doria (Rio de Janeiro, 1988) é comunicóloga, jornalista e wikimedista. Feminista full time e colagista nas horas vagas. Imigrante desde 2016 quando se mudou para o Porto, trabalha atualmente para a Wikimedia Foundation e como jornalista freelancer. Desde 2020, é uma das Wiki Editoras Lx, coletivo de editoras da Wikipédia que visa diminuir a desigualdade de gênero na plataforma editando sobre mulheres cis, trans e pessoas não binárias.
Drika Prates é ilustradora, designer gráfica e pintora. Reside em Portugal desde 2018, quando veio fazer seu mestrado em História da Arte Contemporânea na NOVA-FCSH e participou de residências artísticas locais, como o Festival A Salto em Elvas, além da Bienal de Coruche (2019). Ilustrou o livro Exposta da poeta brasileira Marina Vergueiro e hoje estuda ilustração num curso avançado do Ar.Co, em Lisboa. O seu trabalho é influenciado pelas cartografias do corpo, da natureza e da cidade, além de transitar pelas pautas feministas da vida em sociedade.