O sonho de uma galinha sem‑nome
Entre o ovo e a galinha, Dori Nigro traz-nos um conto sobre liberdade, resistência e independência.
Este é o quarto capítulo de uma coleção de peças criadas, a propósito do 200º aniversário da independência do Brasil, por pessoas brasileiras que vivem em Portugal. Dori Nigro foi escolhido por Luca Argel, um dos cronistas-curadores que convidámos para escrever e nomear outros autores, numa lógica de descentralização dos discursos e da ocupação dos lugares de fala.
O dia amanheceu ensolarado, anunciando a boa nova. Era o fim das chuvas invernais. Bero acordou ainda mole. Não havia escola e o seu corpo queria ficar a dormir mais algumas horas. Ele não gostava de acordar cedo. O pai de Bero era noturno, como ele, já sua mãe era do alvorecer. Ela despertava sempre bem-disposta, preparava o ovo matinal, quase cru, do jeito que ele gostava, gentilmente cedido pela galinha sem-nome que Bero havia ganhado de seu pai como presente de aniversário.
Bero adorava animais. Não tinha sorte com os bichos. Tentou criar periquito e, ingênuo, cansou de ver o bicho preso. Abriu a gaiola, só que o pássaro desconhecia aquela liberdade. Quando era criança pequena ganhou a primeira galinha do pai, mas, ela, coitada, acabou virando comida dum gato esfomeado, antes de chegar à casa. Bero jurou não querer mais bichos. O pai, para animá-lo, trouxe-lhe outra galinha, sem-nome. Certo dia ela cansada da vida de galinha foi-se embora, sem deixar notícia. Ainda hoje, Bero não sabe se a galinha foi levada pelas cheias ou forjando voo de independência distraiu-se, virando comida na mesa da casa vizinha.
Em casa de Bero, não estava na intenção de ninguém comê-la. E, provavelmente, sabendo disso, a galinha quisera reclamar o direito à vida e morte, voando na sua liberdade clandestina. Antes de fazer a viagem, ela colocou no mundo duas crias, para distrair-se da sua solidão de galinha. Ela não gostava de muita cria, como certas galinhas que tinham mais de dez crias, por ano. Escolhia bem os ovos. Mas toda cria quando cria asas quer voar. As suas crias voaram, mal mostraram as asas. Daquela galinha, Bero e sua família, só comiam os ovos.
A galinha era boa de ovo. Podia passar um dia inteiro só a botar ovo. Bero adorava ovos. Cozidos, assados, crus. De páscoa. Bero gostava também de dar ovada na cabeça das pessoas aniversariantes, mas não gostava de que dessem na sua. O cheiro do ovo impregnava o cabelo e demorava dias para sair. Segundo as línguas mais velhas atraia sorte. Bero tornou-se um exímio atirador de ovos.
Separar a gema da clara era uma tarefa difícil. Era preciso concentração. Depois do primeiro, o segundo e terceiro tornavam ainda mais difíceis. Era como aprender sobre o ovo a cada novo ovo. O cansaço era recompensado pela omelete feita pelo pai. Cada ovo tinha um passado. Cada ovo contava uma história. Um ovo contava das vidas interrompidas, enquanto o outro, das vidas vividas. Cada ovo tinha seu cheiro próprio, que misturado aos outros ovos criava uma diversidade de cheiro único. Cheiro a ovo.
Nas manhãs de setembro, na casa de Bero, iniciava-se a rotina de partir os ovos. Era o aniversário de sua mãe no mesmo dia de uma pseudoindependência. O aniversário de Bero era no mesmo mês e dada a proximidade, na artimanha da sobrevivência, juntavam-se dois bolos em um. A galinha, sem-nome, já era de casa. Esperta, acompanhava o fazer debaixo da mesa, à espera das sobras de qualquer coisa. De vez em quando, manhosa, bicava a ponta dos dedos de quem batia o bolo, chamando atenção à sua existência, como se ela fosse fácil de esquecer. A verdade é que aquela galinha era parte da família. Só não dormia dentro de casa porque fazia muito cocô.
A tia de Bero gostava mais dos ovos do que das galinhas. Não perdia a rotina anual da quebra de ovos por nada. Para ela, não havia festa sem bolo. Gentilmente, encarregava-se da feitura. Tinha uma mão boa com um toque antigo, talvez herdado das Guerreiras de Tejucopapo. Juntava os ingredientes na bacia de plástico e supervisionava com olhar atento Bero bater a massa, em movimentos circulares, enquanto lançava ovo a ovo com gema e clara. Ela gostava de bolo pesado. O movimento não podia hesitar até a massa ficar densa.
No fim da labuta, Bero com uma das mãos já adormecida aparava a bacia com a outra mão menos cansada, depois da massa ser levada para a forma untada, e limpava com sua língua trelosa, o chocolate remanescente no vasilhame. O pai de Bero alertava-o para ter cuidado. A avó paterna de Bero tinha diabetes. Ela adorava doces. Fazia Nego Bom. Do lado materno também havia a doença amarga do doce. A sua outra avó era boia-fria de um tradicional engenho de cana-de-açúcar, porém ela não sabia das histórias de um passado presente daquele engenho.
Uma vez na escola de Bero a professora de estudos sociais falou de um rei, também chamado de piedoso. O seu verdadeiro nome era D. João, não o primeiro, nem o segundo. Era o terceiro de uma geração de um grande reinado. A professora disse que ele apreciava açúcar. Talvez por isso fosse conhecido por nomes doces. No seu “doce” gesto, em 1534, autorizou que invadissem a terra dos Caetés, colocando os homens do seu reinado para tomar conta de tudo. Um dos homens de confiança que liderava o bando era Duarte Coelho que, num gesto ainda mais “doce”, ordenou o soterramento dos rios, mangues e mananciais da terra que os Caetés tinham grande respeito e cuidado, para erigir o engenho de cana-de-açúcar onde a avó de Bero viria a trabalhar.
A avó de Bero desconhecia aquelas histórias. Ela nunca foi à escola. Mas conhecia outra história apreendida fora da escola. Aquele mesmo rei era conhecido, no outro lado do mar, por roubar galinhas. Roubava galinhas criadas livres e as levava para terra dos Caetés, que não estavam acostumados com aquele tipo de negócio. Mas aquele rei havia esquecido que as galinhas tinham seus cantos próprios. "Ai, mas que agonia o canto do trabalhador. Esse canto que devia ser um canto de alegria, soa apenas como um soluçar de dor".
A mãe e o pai de Bero conheceram-se numa fábrica de tecidos que não existe mais. O pai de Bero contou-lhe que aquela fábrica era antes uma refinaria. As refinarias são uma espécie moderna de engenho de cana-de-açúcar em que o trabalho é feito por apressadas máquinas, para esconder mãos humanas sofridas e sujas. A mãe de Bero, temendo perder o trabalho, disfarçava-se de máquina. Ela tinha o sonho de comprar um forno grande para assar dois bolos ao mesmo tempo. O forno pequeno, resistente às enchentes, falhava vez por outra. Das suas quatro bocas, apenas duas funcionavam, razoavelmente. Ocasionalmente, por falta de gás ou pelo cansaço das coisas do tempo, o pequeno forno parava, antes do bolo cozer, deixando a tia de Bero aperreada. Quando conseguia cumprir seu papel de forno empestava rapidamente o cheiro do bolo pela casa e quintal, anunciando festa.
A mesa da casa de Bero era cuidadosamente coberta com o tecido de linho arredondado com estampas coloridas de mangas e rosas com marcas e cheiros do ano passado. Os brigadeiros adornavam a mesa e os beijinhos formavam uma cascata que afetava os olhos e as bochechas das miúdas e graúdas. Era a mesa mais fotogênica que havia. O pai de Bero gastava todas as poses do rolo de filme da sua máquina descartável.
A tia de Bero preparava toda a festa, mas quem mais cansava-se era a sua mãe, que repetia todos os anos, desde que Bero entende-se por gente, a mesma ladainha:
- Este ano será a última festa desta casa!
A tia de Bero escondia um sorriso sábio como quem bem conhecesse aquela reza. É verdade que a tia apreciava mais as festas do que a mãe dele, mas tinha consciência de que se faltasse apenas uma seria motivo de chateação. A tia de Bero adorava as festas surpresa. Para entrar nessa brincadeira, Bero convencia sua mãe a forjar uma entrada discreta na casa, ainda escura, como se nada soubesse da celebração.
Às vozes amigas, vizinhas e familiares misturavam-se aos cantos das galinhas despertadas pelo som da pseudoindependência. As galinhas nunca dormiam dentro de casa. Para elas, era delegado um espaço no fundo do quintal. A galinha de Bero, no entanto, não gostava de dormir em poleiro. Tinha medo de ter o mesmo destino das galinhas que ficaram presas no poleiro invadido pelas cheias de um tempo passado. O espírito aventureiro e libertário dela fazia-a subir nos galhos das árvores. Bero admirava o modo como ela dormia em pé, a noite inteira, como quem estivesse sempre preparada para qualquer coisa. E acordava antes do primeiro raio de luz, elegantemente.
Algumas galinhas tinham dificuldade de dormir em pé, pois seus proprietários amarravam suas asas, temendo suas liberdades. Mas, havia galinhas rebeldes que comiam seu próprio ovo para evitar que suas crias tivessem o mesmo destino. Outras arriscaram suas vidas por outras, inspirando emancipação.
Aquela pseudoliberdade causava-lhe fadiga. E, por isso, economizava seu canto. O pai de Bero não tinha liberdade certa e, mal raiava o sol, já se preparava para ir ao trabalho, delineando a barba num caprichoso desenho, no espelho partido. A galinha assustou-se ao ver-se pela primeira vez diante de um espelho. Aquele espelho a fez lembrar de seu passado de galinha. O espelho era a alucinação da galinha.
Ser galinha é um ato de resistência.
Sobre o autor:
Dori Nigro (Recife, Brasil - Porto, Portugal) Performer. Pedagogo. Arte Educador. Nasceu numa família trabalhadora da zona rural e da pesca litorânea do estado de Pernambuco, Brasil. Enveredou pelo caminho das artes através do teatro amador comunitário. Acedeu aos estudos escolares e acadêmicos por meio de políticas públicas de cotas sócio-raciais. Atualmente desenvolve investigação no doutoramento em Arte Contemporânea, no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra, sobre performance e identidades afro-diaspóricas. Realizou estudos de mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas; especialização em Arte Educação; bacharelado em Comunicação Social, com habilitação em Fotografia; e licenciatura em Pedagogia. É criador, com Paulo Pinto, no Tuia de Artifícios, coletivo de criação artística que desenvolve projetos colaborativos no campo da prática artística, arte educação e arte terapia e é membro da União Negra das Artes - UNA.