O que o cinema de terror nos diz sobre a mulher em sociedade

Da visibilidade da mulher no grande ecrã às realizadoras que imprimem a sua visão nas películas, passando pelo público, explicamos o terror no feminino com a ajuda dos dados.

Por Carolina Figueiredo|

“It’s a man’s world”, cantava James Brown, e o mundo do cinema não é exceção. As realizadoras e argumentistas são ainda escassas e, num fenómeno transversal a quase todos os géneros, as protagonistas e personagens femininas vêm-se sub‑representadas em relação aos seus pares masculinos.

No mundo da celuloide, os filmes mais comummente associados ao sexo feminino são os infames chick flicks – entretenimento ligeiro, comédias românticas excessivamente sacarinas, finais eternamente felizes selados com um beijo. O género cinematográfico terror, por outro lado, é estereotipadamente masculino: sangue, tripas e gritos de horror. Os homens na audiência regozijam, com um misto de divertimento e estoicismo, enquanto as mulheres cobrem os olhos com os dedos e enterram a cara no peito do acompanhante masculino. Será?

Gritos 2 (1997)

Desafiando as expectativas e estereótipos culturais, o género terror é dos que mais escreve, filma e dá voz às mulheres, com uma audiência feminina significativa. Os motivos são debatíveis: alguns pensam no terror como um veículo transmissor de representações negativas da mulher, vitimizadas por uma qualquer entidade maligna que (quase invariavelmente) assume a forma de um homem. Outros, particularmente em anos recentes, optam por aplaudir o terror como um género feminista em que a mulher sobrevivente derrota o vilão, num desfecho triunfante.  

Em qualquer dos casos, as representações femininas no cinema de terror são uma interessante ferramenta de análise do papel da mulher em contexto de sociedade, fora do âmbito circunscrito do cinema.

Capítulo 1: A visibilidade das mulheres no cinema (de terror)

Suspiria (1977), de Dario Argento

Apesar de uma tendência de mudança, caracterizada por avanços e recuos, as estatísticas são claras: as histórias no grande ecrã são maioritariamente dominadas por homens, pelo menos nos filmes oriundos dos EUA. Em Portugal, estes filmes asseguram 75% das visualizações em cinema. Os gráficos que se seguem partem de uma amostra de filmes predominantemente norte-americanos.

A média anual de protagonistas masculinos, em todos os géneros cinematográficos, reina com mais de metade da percentagem total. Mesmo no ano com maior equidade, 2019, as protagonistas femininas mantêm-se abaixo dos 50% e jamais comprometem a supremacia das histórias masculinas. 

A distribuição destes dados pelos principais géneros cinematográficos permite uma compreensão mais detalhada da representação das mulheres no grande ecrã.

A conclusão parece ser a de que não existe um género tipicamente “feminino”. A popularidade das mulheres na categoria dramática poderá justificar-se pela maior amplitude deste rótulo, onde se incluem a maioria das narrativas ficcionais mais “sérias”, e, também, por ser este o género mais produzido internacionalmente. As comédias dominaram durante três anos consecutivos, mas têm vindo a registar uma franca tendência decrescente.

O género terror é o que mais se destaca, com uma representação feminina constante. Com exceção de um único ano, tem-se mantido firmemente no pódio e chegou a liderar em dois anos, com um novo recorde de visibilidade: 39% de protagonistas femininas.

O Rebanho (2021), de Malgorzata Szumowska

A abundância de protagonistas masculinos repercute-se noutras variáveis. Os homens impõem a sua voz e presença tanto no tempo em que aparecem no ecrã, como na duração das suas falas.

As estatísticas indicam que até em filmes de princesas e contos de fadas (como A Pequena Sereia, Mulan e o mais recente Frozen - O Reino do Gelo) mais de metade da totalidade das palavras são proferidas por homens.

Mais uma vez, é no terror que as mulheres são mais vistas e ouvidas.

A forte presença feminina no terror permite que as mulheres sejam vistas e ouvidas, mas... o que fazem?  E o que dizem? Mais do que caras e palavras, importa conhecer a profundidade das suas histórias. 

Nós (2019) de Jordan Peele

Num volume da série de banda desenhada Dykes to Watch Out For, a autora Alison Bechdel desenha uma personagem feminina que, entediada com a centralização masculina no cinema, revela só assistir a filmes que respeitem três regras essenciais. O que começou como uma satirização da forma como as mulheres ficcionais são escritas, em relação e em oposição ao sexo oposto, tornou-se um popular método de análise da cultura popular, sobretudo em círculos feministas. O teste de Bechdel, ao contrário do que o seu nome possa sugerir, não foi originalmente concebido como uma ferramenta de análise sociológica. Devido à sua criação informal e com pretextos humorísticos, é prudente sublinhar que o teste não pretende determinar categoricamente o carácter feminista ou misógino de qualquer obra e que alguns resultados podem ser ambíguos.​ Eis os critérios:

1. Um filme deve ter pelo menos duas personagens femininas

2. ... que falam entre si...

3. ... sobre qualquer assunto exceto homens.

Ginger Snaps (2001), de John Fawcett

Os três requisitos de Bechdel parecem simples, especialmente quando justapostos com várias propostas de reformulação mais recentes (por exemplo, a adição de novas regras que determinem que as duas personagens devem ter nome ou que a conversa deve durar, no mínimo, 60 segundos). A realidade é menos otimista: 43,3% da generalidade dos filmes da base de dados Bechdel Test Movie List não cumpre pelo menos um dos critérios:

56,7% passam no teste, com três critérios cumpridos

10,2% cumprem dois critérios

21,9% cumprem um critério

11,3% não cumprem nenhum critério

A análise estratificada por géneros cinematográficos reforça alguns estereótipos. Ação e crime, géneros tradicionalmente masculinos, são os únicos em que mais de metade dos filmes reprovam o teste. O drama e a comédia, dois géneros que já sabemos possuir forte presença feminina, não chegam aos 70%. No entanto, o género de terror volta a sobressair positivamente, com a maior percentagem de filmes aprovados pelo teste de Bechdel.

Quem cria e quem consome o cinema de terror?

As discussões cada vez mais acesas sobre paridade de oportunidades profissionais para ambos os géneros parecem ter aberto portas. Apesar de a indústria do entretenimento ser liderada por homens, nunca houve tantas mulheres realizadoras de cinema como na última década. Se as estatísticas evidenciam este crescimento inegável, oferecem também um retrato soturno da morosidade do processo de equidade: dados de 2020, referentes aos Estados Unidos, indicam que quase 80% dos 250 realizadores de topo no cinema são homens.[1]

O predomínio masculino nesta indústria tende a desvalorizar a contribuição feminina. Alguns autores sugerem que o género terror terá as suas raízes na literatura gótica do século XVIII, consumida avidamente e até produzida por mulheres. De resto, as oportunidades de escrita e publicação sempre foram mais restritas a este grupo, confinado às obrigações domésticas - e as obras que chegaram a ser produzidas raramente foram assinadas em nome próprio.

Apesar das adversidades, as mulheres ocuparam uma posição pioneira na sétima arte, incluindo no cinema de terror. Eis algumas das mais proeminentes personalidades do século XX, deste género cinematográfico.

O cinema mainstream tem vindo a alargar os seus horizontes e a permitir o derrubar de velhos clichés por ideias novas e vanguardistas. De qualquer modo, a pré-concepção comummente associada aos filmes de terror é, também, aquela que mais prevalece no grande ecrã: um vilão do sexo masculino que persegue e tortura a heroína feminina. Não é surpreendente, portanto, que a demografia geralmente concebida para os filmes de terror num contexto de marketing não vise mulheres, mas sim uma audiência masculina entre os 16 e os 24 anos. Afinal, que mulher teria prazer em filmes assustadores?

"It is women who love horror. Gloat over it. Feed on it. Are nourished by it. Shudder and cling and cry out - and come back for more."

Bela Lugosi

Para além da longa tradição literária do gótico, documentada inclusive no romance A Abadia de Northanger, de Jane Austen, que descreve o horror como feminino por definição, as audiências contemporâneas continuam a mostrar um forte interesse feminino neste género. Jason Blum, o director-executivo da produtora de filmes de terror Blumhouse Productions (que produziu, entre outros, a saga Actividade Paranormal ou nova trilogia Halloween) admitiu que as mulheres constituem 55% do total das audiências.

Estes números, porém, tendem a sofrer flutuações de acordo com o sub-género retratado. Os thrillers cerebrais e as histórias sobre o oculto parecem agradar mais às mulheres, enquanto os slashers e os filmes com conteúdo particularmente violento ou sexualmente explícito são os menos apreciados. A reação dos homens tende para o extremo oposto, com um interesse acrescido em cenas de gore e violência gráfica.

As explicações para estas diferenças são frequentemente objeto de estudo. Alguns argumentam diferenças biológicas imutáveis, como uma alegada propensão masculina para a violência e uma capacidade empática inata às mulheres. Outros investigadores, por sua vez, alegam que a divergência de reações poderá ser atribuída à socialização de género e à natureza de alguns filmes.

Vários estudos indicam que as audiências femininas mostram uma maior ligação a personagens do mesmo sexo que se distinguem pela inteligência e tenacidade. Isto pode sugerir um maior afastamento das personagens estereotipadas dos slashers, geralmente vitimizadas e divididas em noções dicotómicas de sagacidade/inépcia ou pureza/promiscuidade. Além disso, tratando-se de filmes mais centrados no horror explícito e na vitimização do corpo humano, a mulher na audiência é forçada a confrontar-se, no ecrã, com os seus próprios medos ou traumas: a personagem feminina atormentada, massacrada ou até assassinada pelo vilão.

Quanto aos homens, um estudo publicado no New York Times, composto unicamente por participantes masculinos, indica que a visualização repetida de slashers, como O Massacre no Texas ou Sexta-feira 13, poderá manifestar efeitos nocivos na perceção e interação com o sexo feminino. Um terço dos participantes demonstrou-se sexualmente estimulado ao assistir à representação de violência contra mulheres e revelou concordar com crenças semelhantes à de criminosos convictos, como a de que as mulheres têm prazer na violação.

O peso das expectativas sociais, impostas em ambos os sexos desde a infância, também deve ser considerado. Os rapazes são socialmente incentivados a exibir a sua bravura perante o misterioso e assustador; as raparigas são encorajadas a mostrar-se sensibilizadas perante imagens chocantes, a hiperbolizar o medo que efetivamente experienciam e a adotar uma postura mais feminina, sobretudo em contextos românticos (como uma ida ao cinema a dois).

Sigourney Weaver em Alien, o Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott

Sigourney Weaver em Alien, o Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott

Paris Hilton em A Casa de Cera (2005), de Jaume Collet-Serra

Paris Hilton em A Casa de Cera (2005), de Jaume Collet-Serra

Isabelle Fuhrman em Órfã (2009), de Jaume Collet-Serra

Isabelle Fuhrman em Órfã (2009), de Jaume Collet-Serra

Capítulo 2: Os Arquétipos Femininos

Embora as histórias de terror sejam diversificadas, devido ao potencial criativo do género, os blockbusters e líderes de bilheteiras têm tendência a insistir nas mesmas fórmulas vencedoras. Os velhos clichés e as personagens unidimensionais são, aliás, algumas das explicações apontadas para a habitual ausência do género terror em prémios cinematográficos.

As personagens femininas são das mais notáveis vítimas deste fenómeno – são frequentes os gracejos sobre a “loira burra” que morre primeiro ou em nada contribui para o enredo, para além de decisões absurdas e gritos ensurdecedores. Mais do que lugares-comuns do cinema de terror ou estereótipos reciclados, estas representações são vislumbres de como a mulher é percecionada em sociedade.

A tabela comprova uma percentagem de sexualização muito mais elevada nas personagens femininas não sobreviventes em relação às sobreviventes. A morte parece atuar como uma forma de punição face ao desejo e autonomia sexual (com 35% a ser atacadas e assassinadas em pleno ato), enquanto as sexualmente inativas são recompensadas pelo celibato com a sobrevivência.

O mesmo não se verifica com as personagens masculinas. Uma comparação entre as categorias de não sobreviventes e sobreviventes permite constatar níveis de sexualidade semelhantes, ou inclusive superiores nos sobreviventes em alguns parâmetros. A provocação, desejo e ação sexuais parecem apenas determinar o destino das personagens femininas, sem consequências aparentes para as masculinas.

Para efeito de análise, selecionámos quatro arquétipos principais dentro dos vários padrões identificáveis em slashers. A azul estão as final girls, as corajosas sobreviventes; a roxo as vítimas; a cor-de-rosa as femme fatales que ousam contrariar o mito de que os vilões são unicamente masculinos; por fim, a laranja estão as hags – bruxas ou mulheres velhas. Das inúmeras escolhas possíveis, foram eleitas quatro personagens icónicas como representantes das suas respectivas categorias. As personagens serão comparadas com os padrões de comportamento típicos do seu grupo; o gráfico é interativo.

Capítulo 3: A experiência feminina

O mundo do terror e a sua receção cultural dividem-se entre acusações de misoginia e feminismo. As representações de violência contra mulheres indefesas parecem ser consistentes com os padrões de comportamento e opressão detetados fora do ecrã. As vítimas femininas de filmes de terror demoram o dobro do tempo a morrer, com cenas prolongadas de perseguição e tortura – decisões que, por vezes, são assumidas como deliberadas pelos realizadores e argumentistas:

I like women, especially beautiful ones. If they have a good face and figure, I would much prefer to watch them being murdered than an ugly girl or man.

Dario Argento

Apesar do maior índice de sofrimento, as mulheres sobrevivem em maior número aos assassinos. Algumas provas sugerem que o género terror não brutaliza e vitimiza mulheres em particular; pelo contrário, dá-lhes oportunidade de sair vitoriosas no final e de derrotar o oponente masculino.

A conotação feminista do terror tem sido defendida por diversos críticos de cinema, que realçam a abundância de protagonistas e o relato de histórias complexas, emocionalmente ricas, ousando debruçar-se sobre tópicos intrinsecamente femininos ainda pouco explorados noutros géneros. Os slashers tendem a seguir estruturas convencionais e menos orientadas pelas personagens, mas outras formas de cinema de terror – de enredos mais densos e atmosféricos, com personagens desenvolvidas – atrevem-se a explorar temas intrincados. Alguns críticos falam do conceito de “feminino monstruoso”: a experiência da existência enquanto mulher, apresentada da forma mais crua, autêntica – e, sim, monstruosa – possível.

A menstruação é ainda um tabu cultural no Ocidente, escudada por eufemismos como “aquela altura do mês”. No cinema de terror, o turbilhão hormonal toma uma forma de mulher-lobo que jorra sangue, dor e a fúria típica da puberdade. O fim de um relacionamento, que assumiria contornos mais realistas em géneros como o drama, culmina num clímax em que a protagonista vê o parceiro extinguir-se em chamas. A vida íntima feminina é apresentada de uma forma hiperbolizada, mas também honesta e catártica. Afinal, as imposições e expectativas de género impelem a mulher ao silêncio e à modéstia; no cinema de terror, estes papéis são subvertidos e a voz da mulher sobrepõe-se, fere, mata. E, acima de tudo, importa.

Os padrões de beleza irrealistas e a indústria da beleza são dissecados em Helter Skelter (2012).

Uma relação termina em chamas em Midsommar: O Ritual (2019).

O aparecimento da primeira menstruação despoleta mudanças irreversíveis em Ginger, de Ginger Snaps (2001).

Uma vegetariana ganha apetite por carne crua - e, mais tarde, humana - em Raw (2016), numa metáfora para o despertar sexual.

O terror, em particular nos filmes mais recentes, tem sido escrito ou realizado por mulheres, pintando um futuro esperançoso para a indústria cinematográfica. Metade da população mundial começa a estar representada no ecrã como artistas e criadoras, mas também como seres humanos cuja história vale a pena contar.

A ascensão até à visibilidade ainda é um caminho longo, pautado por percalços, estereótipos e obstáculos. Mas a resiliência das mulheres no cinema talvez um dia se assemelhe à vitória de uma final girl, em tons de negro e escarlate.