O que dizem os deputados?
Analisámos seis anos de debates na Assembleia da República, mais precisamente os 619 debates parlamentares das XIII e XIV legislaturas (2015-2021).
Eleições legislativas são sempre uma oportunidade de olhar para o futuro. Nos programas eleitorais de cada partido explanam-se as visões que cada partido tem do país que quer: um ciclo legislativo é uma possibilidade de tentar mudar a sociedade, de desenhá-la um pouco mais à sua medida.
Sabemos que os partidos que se já se sentam na Assembleia são também aqueles que têm maior probabilidade de eleger deputados. Por isso, em vez de olharmos para o que querem fazer, esmiuçámos o que disseram ao longo das últimas duas legislaturas. O que nos dizem as palavras dos deputados, em mais 95 mil intervenções na Assembleia da República?
Todos os gráficos são interativos. Notas metodológicas no final do artigo.
A diferença entre cada partido é clara nos grupos de pessoas que nomeiam. À esquerda, os partidos tendem a alinhar-se no apoio aos trabalhadores. Em relação ao total dos seus discursos, o Partido Comunista Português (PCP) é o partido que mais refere trabalhadores, seguido pelo Bloco de Esquerda (BE) e pelo Partido Ecológico “Os Verdes” (PEV). A Iniciativa Liberal (IL) é o partido que menos fala de quem trabalha. No entanto, destaca-se como o partido que mais refere os contribuintes.
Já os partidos para quem os jovens (e estudantes) assumem maior importância nas suas intervenções são o PAN e a IL, mas são os deputados não inscritos (neste caso, as deputadas) que dedicam a este grupo maior atenção.
No centrão, PS e o PSD surgem nivelados com percentagens muito semelhantes tanto na importância que dão aos trabalhadores como na que dão aos cidadãos. No entanto, o PS coloca o protagonismo mais vezes nos estudantes, ao passo que o PSD prefere falar de quem paga impostos. Apesar do seu peso eleitoral, nos últimos seis anos, os pensionistas foram um grupo quase omisso dos debates parlamentares. A exceção foi a reposição das pensões no início da era da Geringonça.
Mas a importância aferida pela frequência com que os membros de um partido dizem determinada palavra é uma métrica ambivalente, podendo indicar apoio ou repulsa.
A clivagem entre a esquerda e direita é mais evidente nos assuntos que governam as suas preocupações económicas. Como catalisadoras de emprego e crescimento, as empresas são o foco da maior parte das conversas, mas enquanto a precariedade laboral é um tema exclusivo da esquerda, a direita prefere apontar a mira aos impostos e, no caso da IL, à dívida. O PCP, o PEV e o Bloco são os grupos parlamentares que mencionam questões salariais com maior frequência, alinhados na defesa de quem trabalha. Finalmente, a corrupção é um tema em maior destaque nos discursos do Chega (CH) e do PAN.
Num ponto os partidos parecem estar quase todos de acordo: quando mencionam ideologias é, sobretudo, para apontar o dedo, embora existam exceções. A divergência é inequívoca no caso do PCP e do PEV, que nunca mencionam o comunismo nem o socialismo. Do outro lado, PSD, CDS-PP e IL tecem acusações de socialismo e, ocasionalmente, de comunismo. Já o PS tende a reforçar a sua própria matriz social-democrata.
João Cotrim Figueiredo, deputado único da Iniciativa Liberal, é uma raridade neste contexto, referindo a sua própria ideologia tanto ou mais do as dos outros. É também ele quem usa mais vezes a palavra "liberal". Em apenas dois anos, utilizou-a 453 vezes - mais do que todos os outros grupos parlamentares juntos e do que em toda a legislatura anterior.
A julgar pela frequência com que são proferidas, as expressões de apoio aos colegas de bancada são uma parte fundamental do trabalho parlamentar. "Exatamente!" é uma das expressões favoritas dos deputados portugueses. Esta exaltação é proferida 2383 vezes em 517 sessões, mas nada bate o "Muito bem!". O incentivo foi dito 9061 vezes em 605 sessões. Partidos ou claques? Nem sempre é claro. Em seis anos na Assembleia da República, ouviram-se aplausos mais de 30 mil vezes. Já os risos foram menos audíveis, mas surgem 1699 vezes nas transcrições dos debates.
Ficámos muito curiosos quando encontrámos 68 crocodilos em debates. Estes répteis surgem em condições específicas: sempre em acusações de falsas choradeiras alheias. O PS e o PCP são os maiores caçadores de "lágrimas de crocodilo", usando a expressão 15 vezes. Já o PSD e o CDS-PP convocaram sapos por uma dezena de vezes, para acusarem bloquistas e comunistas de os incluírem na sua dieta de negociação política ao lado do PS. Outras aparições inesperadas são o Papão e a Carochinha. O Papão é uma vedeta na bancada no PSD, que o invocou em onze ocasiões. Já a Carochinha é igualmente popular entre as bancadas do CDS-PP e do Bloco, com cada um dos três partidos a trazê-la para a conversa seis vezes.
Os partidos fora do centrão produzem os deputados mais interventivos, algo justificável pelo facto de terem menos pessoas para alternarem os discursos. Importa, ainda, frisar que os deputados únicos, bem como os não-inscritos, estão mais limitados do que os seus colegas (dependendo do tipo de debate, pode haver uma redução do número de declarações admitidas ou da sua duração).
Neste campeonato, João Oliveira, do PCP, lidera na frequência absoluta com 3691 intervenções em seis anos; Cecília Meireles (CDS-PP) e Pedro Filipe Soares (BE) ocupam as segunda e terceira posições deste pódio. No entanto, é de notar que, com menos uma legislatura do que Oliveira, André Ventura (CH), Heloísa Apolónia (PEV), Assunção Cristas (CDS-PP) e André Silva (PAN) conseguem todos um lugar na lista dos vinte mais interventivos. Destes, o destaque vai para Ventura, que consegue a proeza em cerca de metade do tempo dos restantes, visto que a XIV legislatura ficou a meio, graças a uma geringonça que se desconjuntou.
A ideia da aliança das esquerdas foi avançada por Rui Tavares (Livre) durante a campanha eleitoral de 2015, mas o apelido “geringonça” surgiu já no parlamento pela boca do então líder do CDS-PP, Paulo Portas. Com o empurrão da comunicação social, o termo disseminou-se rapidamente e, apesar da má conotação, acabou por colar.
É certo que foi a direita quem mais se agarrou ao termo, fazendo-o sobretudo durante o período em que a geringonça lá se foi aguentando. O PSD foi quem falou mais do arranjo governativo nestes termos, atingindo o pico em 2017, ano em que as menções ultrapassaram as 70. Com a desintegração da geringonça em 2019, a utilização do termo na assembleia abrandou consideravelmente. Contudo, o chumbo do orçamento de estado para 2022, que levou à convocação das eleições antecipadas, reavivou as memórias da aliança informal dos partidos de esquerda.
Da geringonça de esquerda à chegada de novos partidos, os últimos seis anos foram marcados por profundas alterações daquilo que tendia a ser o parlamento português. 2015 foi um ano de viragem por várias razões. Além da maioria da esquerda que garantiu a formação de governo, apesar de o PS não ter conseguido a maioria parlamentar, a grande novidade foi a chegada do PAN. Desde 1999, ano em que o Bloco de Esquerda elegeu os seus dois primeiros deputados, que não entravam novos partidos na Assembleia da República. Esta vitória do PAN parece ter alavancado uma pequena revolução no parlamento. Em 2019, foram três os novos partidos a conseguir eleger um deputado: Chega (André Ventura), Iniciativa Liberal (João Cotrim de Figueiredo) e Livre (Joacine Katar Moreira). Desde o início da década de 80 que não havia tantas forças políticas representadas na assembleia. No domingo, o povo decide se quer continuar assim ou não.
Notas Metodológicas
Do sítio da Assembleia da República, recolhemos as transcrições de todos (619) os debates parlamentares das duas últimas legislaturas, a XIII e a XIV da terceira república portuguesa (entre 2015 e 2021). Filtrámos apenas intervenções de deputados, excluindo intervenções de membros do Governo. Usámos a biblioteca de código Spacy para processamento de texto, usando métodos como tokenização de palavras e reconhecimento de entidades mencionadas. Houve, ainda, revisões e ajustes manuais ao nível dos termos contabilizados (correção de gralhas, uniformização temática, etc.).
Apesar de a deputada Joacine Katar Moreira ter feito algumas intervenções em representação do Livre, considerámos a amostra insuficiente para a análise/comparação por partidos (apenas 28 intervenções cerca de 95 mil). Assim, excluímos o Livre dos gráficos.
Os deputados não inscritos têm as suas intervenções contabilizadas da seguinte forma: até ao momento da sua desfiliação, integradas nos partidos que representavam inicialmente (PS, Livre e PAN), e como Não Inscritos depois disso.
Os gráficos sobre quem interessa e quais os temas económicos mais importantes para cada partido incluem os termos ilustrados e palavras derivadas ou semelhantes. Estes gráficos correspondem às proporções destes termos/temas dentro do universo de intervenções de cada partido.
Todo código desenvolvido para este artigo está aberto e disponível no Github do Interruptor.