Num país sem atletas, como se criam campeões?
Debilidades de investimento, expetativas desajustadas e um país que se recusa a praticar desporto. Na corrida para as medalhas olímpicas, ainda há muito para fazer em Portugal, mas a mudança já está em marcha.
Todos os gráficos são interativos. Notas metodológicas no final do artigo.
Este artigo foi co-produzido por Ricardo Correia.
A corrida era de 10 mil metros, mas foi literalmente na reta final que Fernanda Ribeiro deu a volta ao resultado. Quando tudo parecia decidido, com um avanço considerável de Wang Junxia (recordista mundial da altura), eis que, nos últimos 80 metros, a portuguesa arranca disparada, ultrapassando a atleta chinesa – Ribeiro bate a rival e também o recorde olímpico. Nesse dia, 2 de agosto de 1996, a penafidelense imprimiu o seu nome na história do desporto ao conquistar a medalha de ouro nos 10.000m femininos, nos Jogos Olímpicos de Atlanta. Foi o terceiro ouro olímpico de Portugal, numa história que, até hoje, se conta pelos dedos de uma mão: Carlos Lopes (maratona, Los Angeles 1984), Rosa Mota (maratona, Seul 1988), Fernanda Ribeiro (10.000m, Atlanta 1996), Nelson Évora (triplo salto, Pequim 2008) e Pedro Pichardo (triplo salto, Tóquio 2020).
O currículo de Fernanda Ribeiro na altura deixava em aberto a esperança de uma medalha olímpica. Nos anos anteriores, tinha sido uma autêntica máquina de arrecadar medalhas – só nos 10.000m, colecionara os títulos de campeã europeia em 94 e campeã mundial em 95, mas também alcançara o pódio noutras distâncias, como 3.000m e 5.000m. Mas em 1996, o percurso imaculado parecia estar prestes a desvanecer-se. “Eu tive muitos problemas com o tendão de Aquiles em 96. O médico deu a minha carreira como terminada. Nessa altura, estava no Brasil a treinar para os Jogos [Olímpicos] de Atlanta. Vim para Portugal e comecei a ser tratada pelo departamento médico e pelo massagista do FCP. E quando cheguei cá e disse que tinha acabado a carreira, eles não deixaram, porque diziam que ia ser campeã olímpica”, contou Fernanda Ribeiro ao Interruptor em entrevista. A gestão do corpo para a derradeira vitória obrigou-a a abdicar de correr na prova de 5.000m, apostando tudo nas 25 voltas à pista olímpica de Atlanta.
Um título olímpico é um feito em qualquer parte do planeta, mas num país onde mais de dois terços da população admite nunca praticar desporto, as ínfimas probabilidades tornam-se ainda mais microscópicas.
Os dados recentes escondem uma verdade com mais de um século de história. Enquanto prática cultural, em Portugal, o desporto só começa a ganhar verdadeira popularidade nos anos 20 do século passado, num fenómeno transversal ao resto da Europa. Até essa altura, conforme explica o historiador Francisco Pinheiro (Universidade de Coimbra), prevalecia uma ideia “de desporto muito elitista, [que vinha] do final do século XIX, muito ligada aos meios urbanos, a Lisboa e ao Porto, e sobretudo às elites da época”. Apesar da popularidade crescente de certas modalidades, como o ciclismo e, claro, o futebol, as próprias condições de vida da maior parte da população portuguesa da altura não permitiriam uma prática desportiva frequente. Para lá das questões laborais e de desigualdade sócio-económica, a prevalência de um quadro crónico de subnutrição nas camadas jovens, que incluía raquitismo generalizado, dificilmente deixaria margem para fantasias de campeões até praticamente aos anos 70.
No entanto, nesses loucos anos 20, a febre do desporto alastrou um pouco por toda a população e nunca mais deixou de fazer parte da nossa cultura, uma paixão que, conforme explica Pinheiro, “adveio da imprensa e da relação afetiva que o português tem com o desporto e, aí, em especial com o futebol, cuja importância também deve ser destacada”. Nessa década, arrancou o Campeonato Nacional de Futebol (1923) e a Seleção Nacional de Futebol (masculina) acabaria mesmo por ir os Jogos Olímpicos de 1928, em Amesterdão, alcançando os quartos de final, numa competição à altura equivalente a um Mundial de futebol. Esta conjugação de eventos resultou numa explosão de periódicos desportivos e, até, na criação do primeiro jornal diário dedicado ao desporto, o Diário de Sport, que acompanhou os Jogos Olímpicos de Paris, em 1924. Alavancada também pelo aparecimento da rádio, a expansão da popularidade do desporto também deve muito ao ciclismo. Também nessa década, arranca a primeira Volta a Portugal em Bicicleta (1927), precedendo, por exemplo, a vizinha La Vuelta (volta a Espanha em bicicleta) por oito anos. Apesar de pontuais interrupções, a prova-rainha do ciclismo nacional continua até hoje e vai na sua 82ª edição.
Contudo, Pinheiro reforça que, não obstante a popularidade do desporto em Portugal, “a dificuldade de criação de uma cultura desportiva em Portugal, é transversal desde o século XX até aos dias de hoje. Embora, hoje em dia, tenhamos mais ferramentas para podermos alimentar ou criar uma cultura desportiva entre os portugueses”.
Ainda que mantenha uma clara diferença em relação à Europa mais a norte, Portugal tem melhorado bastante no índice de prática desportiva. Segundo os dados do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), entre 1996 e 2018, o número de praticantes de desporto federados quase triplicou, passando de 265.588 para 667.715. Importa frisar que este valor inclui federações multimodalidade, como é o caso da Federação Académica do Desporto Universitário (FADU), além de outras atividades como Xadrez, Damas ou Campismo e Montanhismo. A prática desportiva feminina acompanhou este ritmo de crescimento, mas as mulheres (30,43%) continuam a ser uma minoria no desporto e não constituem sequer um terço dos praticantes.
A falta de tempo enquanto razão primordial para nunca praticar desporto pode ser explicada, em parte, pelo número de horas trabalhadas. Segundo o Eurostat, em 2017 (ano em que foi conduzido o inquérito do Eurobarómetro do mapa acima), Portugal era um dos países da União Europeia em que se trabalhava mais horas por semana (42), um valor igualado pelo Chipre e apenas ultrapassado pela Áustria (42,7) e pela Grécia (44,7). Nos anos mais recentes, estes valores baixaram ligeiramente, mas Portugal mantém-se acima da média europeia. Já a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia, os países em que a maior percentagem da população pratica desporto, estão todos abaixo da média da UE no número de horas trabalhadas. Quanto à discrepância de género, as estatísticas da OCDE indicam que as mulheres portuguesas são, não só das que despendem mais tempo em trabalho não remunerado (inclui trabalho doméstico e de cuidados com dependentes), mas também das que mais o fazem em comparação com os homens – cerca de 5h28m diárias contra apenas 1h36m, praticamente o triplo do tempo.
A falta de meios financeiros surge apenas na terceira posição nas razões para a baixa prática desportiva, mas estes dados dizem respeito a pessoas com mais de 16 anos, naturalmente com maior disponibilidade financeira por estarem largamente em idade ativa, pelo que é difícil determinar o impacto na formação em idades mais jovens. Ainda assim, é de assinalar que Portugal é o país europeu (juntamente com o Chipre) que mais aponta o preço como obstáculo à prática desportiva. No que concerne a formação de novos talentos, também o historiador Francisco Pinheiro aponta o modelo utilizador-pagador como um dos maiores obstáculos à prática desportiva. Além dos custos de mensalidades de clubes, praticar um desporto inclui, na maioria das vezes, equipamento específico e apoio às deslocações. Famílias com menos disponibilidade financeira têm, assim, menos de condições de assegurar que os seus membros possam prosseguir com a prática desportiva fora da escola. Na Juventude Operária do Monte Abraão (JOMA), o presidente, João Cardoso, garante que “não há ninguém que deixe de fazer desporto por não poder pagar. O clube está ao serviço das pessoas e quem não pode pagar não paga”, afirmando que a instituição trabalha com as famílias para perceber se existem carências financeiras, de modo a acomodar essas situações. No entanto, admite que as mensalidades são fundamentais para ajudar a suportar a despesa corrente do clube, que inclui técnicos ou o aluguer da pista do vizinho Real Sport Clube [de Massamá], onde treinam os seus atletas.
São quatro as condições necessárias para formar um atleta olímpico: 1) técnicos de qualidade, 2) uma pista para treinar, 3) ter acompanhamento médico e 4) o clube ter condições para acompanhar os atletas em termos de apoios.
Em 1973, um grupo de jovens que gostava de fazer desporto resolveu levar a paixão um pouco mais longe e fundou o seu próprio clube de bairro, nos arredores de Lisboa. No Monte Abraão, na então vila de Queluz, nascia a JOMA. Apesar de ter o foco inicial ter estado apontado ao futebol, desde cedo se lançaram no atletismo e, ao longo das décadas, alargaram o leque de modalidades disponíveis. Da sua formação, saíram 232 campeões nacionais individuais, 26 títulos nacionais coletivos, muitos recordes nacionais batidos e vários atletas olímpicos. Foi lá que a recentemente medalhada olímpica, Patrícia Mamona, deu início à sua carreira, em 2002. Competiu pela JOMA até 2010, mudando-se depois para o Sporting.
O caso da atleta que cresceu no Cacém está longe de ser o único. Fora do futebol, pesem algumas exceções, as opções em Portugal para um atleta profissional resumem-se praticamente a um par de grandes clubes, nomeadamente Sporting e Benfica. Clubes de formação, como a JOMA, não têm a capacidade financeira de suportar atletas seniores, pelo que as opções de prosseguir uma carreira no desporto de alta competição obrigam a uma mudança de equipa. Cardoso resume a questão à falta de receitas do clube, explicando que a modalidade “tem um problema que é a falta de patrocinadores; às vezes conseguimos arranjar melhores patrocinadores para o futsal”, isto apesar de se terem tornado na “melhor escola portuguesa de atletismo” há cerca de quinze anos.
Se hoje a passagem a sénior é difícil, há trinta anos, as dificuldades eram ainda mais evidentes, até na própria organização da modalidade. Fernanda Ribeiro relembra “como júnior eu era excelente, mas fui apanhar atletas muito mais velhos que eu, e que eram muito bons. Agora existem sub-23. Na altura, com 18 anos já era sénior”. Ribeiro conseguiu a sua primeira qualificação para jogos olímpicos em 1988, tendo integrado a equipa portuguesa com apenas 19 anos. Afirma não ter sentido o peso da pressão por ter noção dos seus tempos em comparação com o de atletas mais experientes. Em Seul, conseguiu um honroso 13ºlugar na meia-final dos 3000m, melhorando o seu tempo pessoal em quase dez segundos. No entanto, as provas que antecederam Barcelona, onde decorreram os Jogos de 1992, bem como a sua prestação nessa edição não corresponderam às expetativas. Prestes a desistir da carreira desportiva, acabou por manter-se no atletismo, segundo conta, graças “à família, ao treinador e para mostrar às pessoas que criticavam que não estava acabada como atleta”.
A longa corrida para a mudança
A história da democratização da prática desportiva em Portugal não é fundamentalmente diferente da democratização cultural. Décadas de transição em quase tudo, foi nos anos 70 e 80 do século XX que o esforço avançado ainda na década de 40 começou a dar frutos. Francisco Pinheiro detalha que “o INEF, Instituto Nacional de Educação Física, vai ser criado no início dos anos 40. A Direção Geral dos Desportos, que vai ser a entidade que vai regular todo o desporto em Portugal, também surge nesse período. A construção dos grandes estádios, como hoje os conhecemos com pistas de atletismo, vai surgir sobretudo nas décadas de 40 e 50. Há todo um conjunto de fatores que se conjugam, nas décadas de 40 e 50, que depois vai ter os seus reflexos nas década de 70 e 80. É assim que surge a capacidade de Portugal ganhar uma medalha olímpica de ouro”. Foi precisamente dos escalões do INEF (hoje Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa) que saiu o homem que ajudaria Carlos Lopes a cortar a meta do primeiro ouro olímpico português – Moniz Pereira, treinador de atletismo que estaria presente em 12 edições dos Jogos Olímpicos e ajudaria a formar muitos dos corredores de topo em Portugal, como Fernando Mamede, Francis Obikwelu ou Naide Gomes, entre tantos outros.
O sucesso desportivo de um país não se pode construir às costas de apenas um homem, é necessária uma estrutura profissional alargada. Portugal tem francas debilidades ao nível das qualificações e o desporto não é exceção, mas na década passada o panorama mudou drasticamente. Até 2012, a maioria dos profissionais empregados no setor não tinha sequer o ensino secundário concluído, mas a maré virou em força no ano seguinte. Desde 2013, o ensino superior domina o emprego no desporto, mas este passado demasiado recente provavelmente só começará a dar frutos doravante, uma vez que treinar atletas de alta competição leva muitos anos. Para o próximo ano letivo, a Direção-geral do Ensino Superior lista cerca de 1900 vagas em licenciaturas nesta área.
Apesar dos avanços na área da formação especializada em desporto, ainda há muito por fazer no âmbito dos estudos do desporto para lá desse lado mais técnico. Para o historiador, é clara a “narrativa clássica da omissão da dimensão desportiva na sociedade portuguesa [que] ainda acontece nos dias de hoje”, reforçando que “historiadores destas novas gerações acham que toda a narrativa da história de Portugal parece dominada única e exclusivamente pela política, pela economia, pelas relações internacionais e pela diplomacia. [Historiadores] que acham que a área do desporto não é uma área relevante, digamos assim, para contar a narrativa da história de Portugal mais contemporâneo. Portanto, há aqui ainda um trabalho muito longo para se fazer”. E remata, “nós estamos cerca de 20, 30 anos atrasados do ponto de vista de produção e de investigação científica sobre desporto, até do ponto de vista das humanidades”, realçando o papel que o desporto tem tido nas discussões sobre desigualdade de género em países como os EUA ou os escandinavos.
Num país com os problemas já elencados, uma medalha olímpica não é bem uma aspiração, antes uma miragem, até porque a falta de investimento é gritante. De acordo com o Eurostat, em 2019, Portugal gastou em desporto e atividades recreativas cerca de €62 por habitante, menos €38 que a média da UE. Suécia e Finlândia gastam quase o quádruplo (entre €200 e €250 por habitante); o Luxemburgo é o grande campeão, investindo quase €500 por habitante neste setor. O cenário não é tão aterrador quando analisamos os gastos em percentagem do total de despesa pública – Portugal está perto da média, 0,7%. Ainda assim, a falta de investimento público no setor é crónica e particularmente evidente quando se analisa a comparticipação pública a federações desportivas. Além da queda abrupta no financiamento do desporto durante os anos da crise, o ajuste à inflação revela que o investimento em 1996 era efetivamente maior do que em 2017. Um investimento equivalente em 2017 pressupunha cerca de 43,2 milhões de euros, mais 6,6 milhões de euros do que o valor documentado.
Independentemente dos constrangimentos financeiros do país, entre 2006 e 2017, o Comité Olímpico de Portugal conseguiu manter um investimento público do IPDJ relativamente regular. As maiores quebras surgem em 2013 e 2017, anos imediatamente posteriores a edições de Jogos Olímpicos, o que denota que o investimento é feito com poucas perspetivas de longo prazo. Afinal, o encerramento de uma competição é o arranque de um novo ciclo de treino e um ano parado pode afastar até o atleta mais motivado. Para lá dos olímpicos, a diminuição do apoio às modalidades é evidente e teve um impacto profundo na captação e formação de novos atletas.
É muito difícil democratizar o desporto em Portugal com investimentos públicos tão reduzidos, quando comparamos com o norte da Europa. É impensável uma criança no norte da Europa pagar para praticar desporto, coisa que em Portugal se tornou uma rotina. Na Dinamarca, por exemplo, não conseguem perceber como é possível ter um filho e pagar para praticar desporto, [o que acontece] em Portugal. Para eles isso é impensável, porque têm um modelo social e relação com o desporto completamente diferente.
João Cardoso explicou-nos que o sucesso do projeto desportivo construído ao longo de vários anos, na JOMA, não foi suficiente para manter os apoios financeiros necessários e a concentração de esforços no atletismo teve mesmo de parar durante algum tempo. Hoje, refere que os apoios da administração local foram fundamentais para o regresso da aposta na modalidade, mencionando a União de Freguesias de Massamá e Monte Abraão, a União de Freguesias de Queluz e Belas, e a Câmara Municipal de Sintra como parceiros essenciais nesta nova fase do clube. O objetivo está bem definido: ter atletas do concelho de Sintra a representar Portugal no Jogos Olímpicos de 2028, em Los Angeles. A pandemia também veio dificultar o trabalho de captação de novos talentos, mas, numa das autarquias nacionais com mais população jovem em todo o país, a divulgação do desporto faz-se desde logo junto da comunidade escolar.
Francisco Pinheiro reforça que o investimento e as políticas desportivas resistem um pouco “à margem de ciclos políticos”, adiantando que o papel menor que assume na estrutura da sociedade portuguesa é visível até na sua própria subordinação a pastas como a saúde ou a educação (a tutela do desporto pertence atualmente ao Ministério da Educação), em vez de ser um ramo autónomo.
Os três atos da jornada olímpica
Quatro anos após a vitória em Atlanta, Fernanda Ribeiro aterra em Sidney para a sua quarta edição de Jogos Olímpicos, mas estava de novo a braços com as dificuldades da carreira desportiva: “foi um ano muito complicado. Em 1999, fui ao campeonato do mundo a Sevilha. Tinha de fazer 25 voltas, mas tinha feito uma ou duas e já não conseguia correr. E eu vim com esse problema para [o ano] 2000. E as pessoas estavam com expetativas para o campeonato do mundo e não foram muito simpáticas. Mais uma vez pensei abandonar a carreira, porque tinha falhado e tinha vergonha de ter falhado”. No ano 2000, Fernanda Ribeiro era uma das melhores atletas do mundo: tinha vários títulos em campeonatos europeus e mundiais, um ouro olímpico e era a recordista olímpica na disciplina de 10.000m. No entanto, apesar de ter ganho praticamente tudo o que havia para ganhar, uma temporada menos boa levou a uma espécie de desvalorização do seu percurso alimentada, em parte, pela comunicação social.
Especialista em história da imprensa desportiva, Francisco Pinheiro explica que a cobertura olímpica tende a acontecer em três atos: “o prelúdio, que é a expetativa e as ambições, o pensar no quantas medalhas olímpicas podemos ter em função das participações. Depois, é o desenrolar da história. Muitas vezes corre bem, outras vezes não. E depois é sempre o epílogo. No caso português, é sempre muita frustração, porque não conseguimos atingir muitas vezes os objetivos iniciais, porque eles não estão encaixados com a realidade portuguesa nem com a realidade internacional, e depois é preciso encontrar sempre o culpado das tragédias das participações olímpicas portuguesas”. Ao longo de quase cem anos de participações portuguesas em Jogos Olímpicos, este retrato não mudou substancialmente, embora nos últimos trinta anos, admite Pinheiro, se tenha adensado o clima de culpabilização também com o aval das próprias instituições à volta do desporto. Para ele, o fenómeno é curioso: "parece haver uma espécie de contratualização, como se fosse possível contratualizar medalhas, diplomas e resultados. Acho isso muito interessante do ponto de vista mais ideológico, como se isso fosse possível a partir de um rácio orçamental, conseguirmos pensar em quantas medalhas vamos vencer”.
É certo que o investimento financeiro está longe de ser o único fator determinante na construção de um campeão olímpico – ou, antes, de um atleta de alta competição. De acordo com uma pequena análise publicada no Nikkei Asia, o retorno de investimento em desporto sob a forma de medalhas olímpicas não é linear entre modalidades, nem sequer entre países. Genericamente, o investimento por atleta parece ter mais impacto na natação e no atletismo, mas no Japão e no Reino Unido as modalidades com melhor custo-eficiência são o judo e o ciclismo, respetivamente. Além do dinheiro, é preciso criar condições sociais e culturais para alargar a prática desportiva na sociedade.
Por cá, fica a angústia da desvalorização permanente de modalidades além do futebol. João Cardoso desabafa, “há uns anos, organizámos um colóquio na JOMA. E houve lá um senhor, que era do basquetebol, que disse «Nós estamos no país dos pontapés na chincha!». Isto é uma realidade, só o futebol é que conta neste país. Outras modalidades têm muito mais êxitos que o futebol, mas não são apoiadas nem acarinhadas, nem sequer pelo Estado... o futebol é que é bom”. E prossegue, apontando o dedo aos suspeitos do costume, “o futebol conseguiu aumentar a sua base porque tem os meios de comunicação todos a divulgá-lo. Porquê?! Por que é que as outras modalidades só são realçadas quando há uma medalha de bronze, ou quando a Patrícia Mamona é campeã da Europa? Vão uma vez à televisão, e depois isso morre aí”. Para o historiador Francisco Pinheiro, este cenário reflete a existência de um problema generalizado de falta de cultura desportiva, e esclarece que “quando falamos de cultura desportiva, estamos a falar sobre os valores de tolerância, de respeito. Um conjunto de valores à volta do desporto, de quem pratica desporto e de quem representa Portugal a nível desportivo”.
A 30 de setembro do ano 2000, Fernanda Ribeiro completou os 10.000m olímpicos em 30:22.88, melhorando o seu tempo em praticamente 40 segundos. Ribeiro voltou a escrever o seu nome na história do desporto nacional, sendo uma de apenas cinco atletas a conseguir duas medalhas olímpicas por Portugal. Trouxe a medalha de bronze para casa, tendo ficado a uns escassos 40 centésimos de segundo da prata. A marca é, ainda hoje, o recorde nacional da disciplina. Não é o seu único recorde ainda por bater – a atleta é, desde 1995, a recordista nacional nos 5.000m. Quando lhe perguntámos se tinha orgulho em continuar invencível, o seu espírito desportista brilhou: “as medalhas são nossas, os recordes são para ser batidos”.
Notas Metodológicas
Todos os gráficos apresentados ilustram dados disponibilizados pelas fontes referidas, sem qualquer manipulação além da filtragem.
Para o mapa, utilizámos os dados do Eurobarómetro especial n.º 472: Desporto e a atividade física, nomeadamente as respostas à questão QB1 do volume A. As razões para a falta de prática desportiva também são retiradas desse volume, especificamente da questão QB9.
Para as qualificações dos profissionais no setor desportivo, usámos o conjunto de dados disponibilizado pelo Eurostat.
Conforme o descrito pela PORDATA, os valores relativos ao financiamento público do desporto em Portugal "só incluem federações desportivas dotadas do estatuto de utilidade pública desportiva (enquanto entidades que promovem, regulam e dirigem, no plano nacional, a prática das diversas modalidades desportivas) que se candidataram no ano a financiamento público. As Federações submetem anualmente ao IDP o seu plano de actividades (do qual constam quadros estatísticos) para efeitos de financiamento público. Os valores apresentados são relativos ao valor contratualizado nos programas de apoio financeiro às federações desportivas”.