há uma torre do século treze sob meus sapatos terceiro-mundistas

Eu criei uma língua-mãe. Uma língua em que, ao mesmo tempo, dou a luz e me acolho.

Uma crónica de Gabriela do Amaral sobre estranhamento, despertencimento e reencontros de identidade.

Por Gabriela do Amaral@gahbe|

Este é o segundo capítulo de uma coleção de peças criadas, a propósito do 200º aniversário da independência do Brasil, por pessoas brasileiras que vivem em Portugal. Gabriela do Amaral foi escolhida por Luca Argel, um dos cronistas-curadores que convidámos para escrever e nomear outros autores, numa lógica de descentralização dos discursos e da ocupação dos lugares de fala.

Em 2017 uma das minhas colegas de mestrado revelou pra mim no meio de uma confraternização da turma: «da primeira vez que te vi entrando na sala achei que você parecia um quadro do Portinari.» Este foi provavelmente o primeiro contacto que eu tive com o que significava a minha presença em Portugal. Eu, como brasileira, não-branca, vinda do Rio de Janeiro direto pra uma sala de aula de uma faculdade de letras com vista para o Douro. Eu era uma pintura do Portinari pintada quase 100 anos depois escrevendo a minha história.

Acho que todo brasileiro que chega a Portugal encara a mesma equação difícil de solucionar: ele chega em terras lusitanas com a ideia de que falamos todos a mesma língua. O brasileiro desembarca em Portugal depositando suas esperanças e expectativas na familiaridade da língua portuguesa. Não só na familiaridade da língua, mas na familiaridade da comida, das paisagens, onde por exemplo pode-se assumir o rio Tejo — num momento de saudade, veja — como a Baía de Guanabara.

Na maioria das vezes, essa fantasia da familiaridade vivida na realidade da experiência de ser realmente um brasileiro vivendo em Portugal, pode gerar um grande sentimento de frustração. O brasileiro, ainda no Brasil pensa, — vou pra Portugal, é a mesma língua. Eu jamais iria pra um lugar onde não falam minha língua. — Eis aí o nascimento de uma grande decepção para aqueles que ainda não descobriram. Não, nós não falamos a mesma língua.

Eu acho que eu descobri isso de maneira muito sutil e escondi num lugar muito bem escondido. Num lugar que eu não queria/não sabia lidar. É como quando estamos num relacionamento e aos poucos a pessoa que estamos vai demonstrando um lado um pouco esquisito, um lado que a sua intuição lhe diz que talvez você deva deixar aquela pessoa. Bater a porta e ir embora. Ou talvez vocês devessem conversar.

A ilusão da familiaridade com a vivência da experiência, a saudade, a distância da terra provoca em nós uma enorme sensação de despertencimento. Um estranhamento. Lembro de um colega brasileiro que na minha turma de mestrado na Faculdade de Letras apresentou um seminário sobre o estranhamento. E nunca esqueci aquele seminário, numa busca rápida no dicionário Michaelis encontro para o verbo estranhar: sentir-se desconfortável ou desagradavelmente incomodado diante de costumes, de hábitos diferentes de uma nova realidade; não se adaptar, não se acostumar (a algo ou alguém).

Pra mim uma experiência muito próxima a este estranhamento foi a maternidade. Somando-se à experiência da imigração. Parir em outra terra me deixou duplamente muda. Depois de sentir que também acreditava numa familiaridade em ser mulher e ser mãe. Numa familiaridade dessas duas línguas, que sim, são diferentes. Eu acreditava na falácia de que nasce um bebê, nasce uma mãe. Na verdade nasce um bebê e a sociedade impõe o nascimento da mãe goela abaixo.

Deste lugar de duplo despertencimento, de dupla mudez, deste lugar de duplo estranhamento, eu me vi num território em que para seguir eu precisava criar. E neste caso criar como potência criadora de ferramentas que me ajudassem na minha reinvenção. Foi a partir de um sufocamento que senti na ponta da língua a familiaridade do português e de um sufocamento que senti na superfície da pele pela ilusão da familiaridade da mulher/mãe que pude criar uma nova língua. Eu criei uma língua-mãe. Uma língua em que, ao mesmo tempo, dou a luz e me acolho.

Língua-mãe é o meu terceiro livro de poesia, editado pelo selo FRESCA da livraria Poetria e meu segundo livro publicado em Portugal. Importante dizer aqui, que nesses dois livros eu fui a única poeta mulher brasileira e não branca das coleções, mas o que quero trazer aqui, neste espaço que me foi cedido, é o percurso que me levou a imprimi-lo. Ele vem de uma fissura, de um trauma na linguagem. E é por isso que no poema de abertura eu estou parindo a minha própria língua.

cuidado! cuidado! ela vai parir a própria língua. se afastem! não vai ser uma cena muito bonita. ela
vai parir uma nova língua! a própria língua. não é a nossa língua. eu digo que é a nossa língua.
não, mas senhora, ela me disse que não é a nossa língua. é outra língua. ela tentou escrever na
nossa língua. tentou. mas disseram a ela que não era a mesma língua. ela não entendeu como
não podia ser a mesma língua se essa língua lhes foi ensinada e depois ela começou a acreditar
que não era a sua própria língua não era a mesma língua começaram a fazê-la acreditar nisso aos
poucos vivendo ali ela começou a acreditar e foi gestando a sua própria língua ABRAM A
EMERGÊNCIA ESTA MULHER VAI PARIR A SUA LÍNGUA as contrações estão muito fortes foram
meses gestando a minha língua foram meses cultivando fazendo exames foram meses sendo
acompanhada por pessoas que acreditavam falar a minha própria língua e ninguém falava a minha
língua ninguém que encostava em mim ninguém que olhava pra mim ninguém falava a minha
própria língua AGUENTE ESSA DOR ELA VAI TE LIBERTAR eu vou parir a minha própria língua
FORÇA MULHER FORÇA está quase a sair eu vejo daqui a cabeça antes da língua eu vejo a
cabeça está quase a sair é a língua ela está vindo ela vem ela vem ela chegou viva é a minha
língua vou amamentá-la cuidá-la vou cuidar da minha língua ela é minha ela é minha ninguém
pode tocá-la ela é minha língua toda minha ela é só minha mas senhora ela vai crescer vai
expandir pode ganhar outros sotaques novas formas não não esta língua é só minha é a minha
língua eu a gestei eu a fiz crescer vocês já me tiraram uma língua antes não vão me tirar a língua
agora esta é a minha LÍNGUA criada gestada e cultivada por mim. esta é a minha língua-mãe.

O que se espera como resultado de uma publicação é que exista um diálogo com algum público leitor e crítico. O que eu almejava com a impressão da Língua-mãe era que ele alcançasse algum tipo de repercussão. Mas a resposta foi também quase como eu me sentia, um bocado muda. Ou estaremos (e quem) surdos?

A apresentação do livro ao público na Biblioteca Almeida Garrett em junho do ano passado pela Professora Joana Matos Frias se referiu ao livro como um ensaio e também um gesto performativo «aliás o maior grau performativo deste livro está no seu primeiro poema, e eu só conheço um texto da literatura em língua portuguesa que me tenha provocado o mesmo tipo de sensação só pela leitura, [...] só conheço um texto que tenha me causado uma sensação um pouco parecida, que é abertura do livro Água-viva de Clarice Lispector, as primeiras linhas de Água-viva são bastante desconcertantes, e são linhas que suscitam uma sensação tão física quanto este poema inicial do língua-mãe da Gabriela, e que é uma forma muito especial dela encenar aquilo que ela no prefácio diz: not erasing oneself, portanto, não se apagar a si mesmo, nomeadamente não se apagar a si mesmo como mãe da língua.» Uau! Imaginem quando eu vi esta Professora que admiro tanto dizendo isto do meu livro numa apresentação na biblioteca onde eu ia estudar enquanto fazia o mestrado?

Um outro momento importante que presenciei desde o lançamento deste livro tem relação com seu grau performativo. Foi numa Ginginha Poética, sarau organizado por duas poetas estrangeiras, Maria Giulia Pinheiro e Irma Estopiñà. Enquanto eu criava coragem pra ler o poema de abertura ao meu lado estava a poeta Ellen Lima. Ellen é professora, artista, poeta e mestre em Artes. Nasceu no Rio de Janeiro e é indígena de origem Wassu Cocal (Maceió-AL). Atualmente cursa o doutoramento em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho, em Braga, onde mora. Ellen estava ao meu lado e pude perceber mesmo enquanto eu recitava o poema a sua emoção. Ela chorou um choro da língua perdida e que precisa ser parida, lembrada, acessada e reivindicada constantemente por ela. Ellen me abraçou muito forte e nós nos vimos emocionadas por nos encontrarmos unidas naquele choro, que era diferente mas era o mesmo. Como o nosso estranhamento das línguas.

Foi neste ponto da publicação deste livro que preferi conversar ao fechar a porta e seguir ferida. Eu criei um espaço para iniciarmos um diálogo e o meu desejo era me sentir ouvida, lida, discutida, criticada. Sempre achei o silêncio um lugar onde não há possibilidades. Como Audre Lorde diz, o silêncio não vai te proteger. É preciso que para além de abrirem espaços para nós brasileiros produzirmos, sejam abertas também cada vez mais conversas, diálogos, críticas, inclusão nos painéis de pensamento. A produção desses espaços me parecem um tanto quanto férteis para os dois países.

Para 2022, esse bicentenário de “independência” eu desejo também que você, português, você imigrante, eu desejo que você se aproxime da literatura que estão escrevendo a partir do trauma. Eu desejo que você que sente este sufocamento na ponta da língua e não consegue dizê-lo possa encontrar um caminho fértil de reflexão desta percepção com a literatura. E vou deixar aqui uma recomendação para a sua leitura de 2022, leia Volta para tua terra: uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal com organização de Manuella Bezerra de Melo e Wladimir Vaz publicada pela Editora Urutau. Leia os seus poetas, os seus organizadores, pesquise, discuta, acesse o conhecimento de maneira ativa. É um livro excelente pra fazer isso, para lidar com os nossos estranhamentos, criar diálogos e produzir pensamento.

Alguns passos têm sido dados em direção a isso, este espaço onde fui convidada pelo querido Luca Argel, também brasileiro e imigrante há 10 anos, e que estou usufruindo com muito carinho e vontade de que dê frutos. E é isso, vamos torcer pra essa conversa ter vida longa e não ficar só no começo.

Ah! Minha grande inspiração para escrever este texto foi um poema da peruana Maria Bellén Milan.

Liebenstraum em uma muralha do século XIII


Poderia dizer tanto aqui
há uma torre do século treze sob meus sapatos terceiro-mundistas
e se salto
mulher peruana vinte e sete anos morre com um triste sonho deslocado
[...]
(trad. carlito azevedo)

Espero ter sido como ela, sutilmente colocar os meus sapatos terceiro-mundistas nessa torre do século treze e que eu consiga continuar alocando todos os meus sonhos nesta terra (e onde eu quiser) e principalmente que possamos dividir a mesma bancada de pensamento.

Sobre a autora e a ilustradora:

Gabriela do Amaral nasceu em Niterói, Rio de Janeiro. É poeta e mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela Universidade do Porto (Portugal), cidade onde vive desde 2017. Tem três livros publicados: "Acidentes Tropicais” (Editora Quelônio, 2019, São Paulo), “Cloro” (Editora Flan de Tal, 2019, Portugal) e “Língua-Mãe” (2021, Fresca, Portugal). Gabriela também tem participação em três Antologias: "Terceira Margem: Poesia de Portugal e do Brasil" (Enfermaria 6, 2019, Portugal), "Volta pra tua terra! uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal" (Editora Urutau, 2021, Portugal/Brasil/Galiza) e o recém-lançado "110 Anos, 110 Poetas" Antologia comemorativa dos cento e dez anos da Universidade do Porto" organizado pela Prof. Isabel Morujão com poetas prata da casa em 110 anos da Universidade do Porto (U.Porto Press, 2021, Portugal). Gahbe, como gosta de ser chamada, é também mãe da pequena Matilda de 2 anos.

Drika Prates é ilustradora, designer gráfica e pintora. Reside em Portugal desde 2018, quando veio fazer seu mestrado em História da Arte Contemporânea na NOVA-FCSH e participou de residências artísticas locais, como o Festival A Salto em Elvas, além da Bienal de Coruche (2019). Ilustrou o livro Exposta da poeta brasileira Marina Vergueiro e hoje estuda ilustração num curso avançado do Ar.Co, em Lisboa. O seu trabalho é influenciado pelas cartografias do corpo, da natureza e da cidade, além de transitar pelas pautas feministas da vida em sociedade.