Escritos para medir o silêncio
Três textos de Isabeli Santiago sobre a sua experiência enquanto mulher-brasileira-imigrante em Portugal.
Este é o sexto capítulo de uma coleção de peças criadas, a propósito do 200º aniversário da independência do Brasil, por pessoas brasileiras que vivem em Portugal. Isabeli Santiago foi escolhida por Flavia Doria, cronista-curadora que convidámos para escrever e nomear outros autores, numa lógica de descentralização dos discursos e da ocupação dos lugares de fala.
Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. Escrevo acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.
(Clarice Lispector, in Água Viva)
Epistemologias do chão: Uma carta para Milena Bonilla
Querida Milena,
Talvez você não saiba, mas a cidade onde nasci se chama Sorocaba. Localizada no interior de São Paulo, é uma cidade de médio porte com cerca de 700 mil habitantes, reconhecida como um importante pólo industrial e uma espécie de “braço” da capital (e do capital). Nasci e cresci nesta cidade, grande parte do tempo morando na berma da Raposo Tavares, uma rodovia com 644 km de extensão. Esta estrada começa na cidade de São Paulo e vai até a divisa com o estado do Mato Grosso do Sul. Alguém pode questionar a relevância de tudo isso, eu sei que parece aleatório. Mas esta cidade, Sorocaba, é também Terra Rasgada. Do Tupi-guarani “aba”, que significa terra, e “çoro”, que quer dizer fendida ou rasgada. Em algumas versões, diz-se que este nome tem a ver com o desenho da terra, isto é, as camadas estratigráficas de tonalidades múltiplas, com veios mais claros e escuros que formam um padrão listrado. E esta estrada tem a sua origem nos antigos Caminhos do Peabiru, uma via utilizada pelas populações originárias que ligava os Andes ao Oceano Atlântico e atravessava os atuais territórios do Brasil, Bolívia, Paraguai e Peru. Durante a colonização e até pelo menos o séc. XIX, o caminho foi convertido por colonizadores, jesuítas e bandeirantes numa rota de captura e escravização de indígenas. Não sei ao certo quantas pessoas foram capturadas, escravizadas ou mortas neste caminho, mas foram muitas. O que sei é que ainda hoje, pelo menos no trecho onde cresci, esta estrada continua a ser um intervalo de subalternidades onde se reúnem os pobres, as putas e a classe operária. Toda essa gente entre a fábrica da Coca-Cola, o Makro, cooperativas de transportes e alguns escritórios de mineradoras. O mosaico social é tão complexo que num mesmo quarteirão do bairro em que cresci, separados por três casas, havia uma boate, uma igreja evangélica e um terreiro. Este é o desenho da terra de onde venho. Rasgado. Gradiente. Cheio de sobreviventes.
Imigrar me fez olhar para trás, para dentro, mas sobretudo para o chão.
*
Dry-clean: “até a filha da senhora da limpeza”
No dia em que soube que havia entrado na faculdade não teve nenhuma coruja de Hogwarts voando pela casa para me entregar uma carta mágica. Era julho ou agosto, não recordo a data precisa. Só tenho a lembrança muito presente do calor europeu e dos pequenos veios de suor que escorriam pescoço acima enquanto eu esfregava o chão da Dona S. Eu estava de “férias”, livre para ajudar a minha mãe todos os dias nas limpezas. Limpávamos em média duas casas por dia: uma de manhã, uma de tarde. No final do dia. regressávamos para casa: minha mãe para a terceira jornada doméstica e para o cuidado das duas filhas mais novas. Eu banhava e seguia para a sorveteria onde trabalhava seis dias por semana, até as duas, três da manhã. “Férias”. Nada a ver com o verão das adolescentes que eu via nos filmes da sessão da tarde. Muito distante da ideia do glamour europeu, apesar de eu viver na Figueira da Foz, “o Rio de Janeiro Português”. Depois de passar a madrugada vendendo copos de gelato, cornetos, crepes e croissants para os filhos das patroas cujas vivendas eu também limpava, regressava para a minha casa. O dia seguinte começava cedo, dobrando e colocando os trapos limpos na bolsa da CVC que tínhamos ganhado de brinde na compra do voo “turístico” que trouxe a minha família para cá. Metade da bolsa com panos macios de chão, para a limpeza à seco, a outra metade com sprays de todo o tipo: desengordurante, abrilhantador, antioxidante. Numa sacola menor, à parte, uma garrafa grande de água, um saco de macarrão instantâneo, uma lata de atum e um pacote de bolacha maria, o almoço-lanche meu e de minha mãe.
A Dona S. era uma cliente antiga, das primeiras. Ela preferia as limpezas durante a manhã, tinha um dia por semana na nossa agenda e sempre que alguma outra patroa furava, ela tinha prioridade na vaga “Alô, Dona S., temos horas livre. Se a senhora quiser podemos ir aí passar a roupa e arrumar os guarda-roupas.” Dona S., apesar de patroa era muito humana, jovem, filha de emigrantes. Dizia para fazermos pausa de almoço, comer o que tivesse no armário e na geladeira à vontade. Volta e meia nos dava sacos com roupas que já não lhe serviam. O horror mesmo era a sogra dela. Depois que os meninos nasceram, durante o verão os avós paternos se hospedavam na casa para que os pais das crianças pudessem trabalhar. Aí tudo mudava. A limpeza que normalmente fazíamos numa manhã, se estendia para o meio da tarde. Lembro da raiva que me dava ver as pegadas no chão do corredor que eu tinha acabado de encerar, desenhadas pelo chinelo da sogra enquanto ela falava ao telefone. Limpa de novo, de novo, de novo. Lembro de pensar que devia ter alguma coisa de karma naquela relação sogra-nora e eu havia sido pega pelo meio.
Os olhos da mulher queimavam a minha nuca. Quando ela se aborrecia do telefone puxava conversa comigo para se distrair. Nesse dia em especial eu estava limpando a sala e o marido dela, que era pintor, desenhava na mesa grande que ficava no canto da divisão. Eu já tinha limpado o pó, arrumado os livros, recolhido os brinquedos e aspirado o sofá, o que significa que estava naquele cómodo há pelo menos uns trinta, quarenta minutos. Enquanto ia de um lado para o outro lavar o pano, buscar produto, ligar tomada ia espiando o desenho do marido. Num determinado momento ele disse “Tu gostas de arte, é?”. Respondi que sim, inclusive tinha concorrido para a faculdade de arquitetura no Porto e estava um pouco nervosa porque o resultado sairia naquele dia. A mulher, ouvindo a conversa veio na nossa direção, sapateando na película de cera ainda fresca “Com que então vais para o Porto estudar?”. “Eu gostaria muito!”, respondi, apressada, enquanto me ajoelhava para finalizar o chão com o produto de polimento para “limpeza à seco”. Eu não queria dar corda na conversa porque se ela resolvesse ficar andando por ali ia manchar o piso todo e meus joelhos já estavam doendo. Estava um calor infernal, ainda tinha de lavar os vidros da varanda antes que os meninos acordassem. Eu já estava no hall quando o meu celular pré-histórico que custou dez euros tocou “Estou a falar com a menina Isabeli Santiago? Daqui fala da Universidade Lusíada. Como está? Temos aqui a sua candidatura ao curso de arquitectura e temos excelentes notícias. Graças à sua média do secundário a Faculdade gostaria de lhe oferecer uma bolsa de 80% para abater no valor das propinas se optar por fazer parte da nossa instituição. Tem disponibilidade para vir ao Porto com a sua encarregada de educação amanhã? Gostávamos de formalizar uma proposta!”. Ainda de joelhos areando o chão, eu me continha e gesticulava freneticamente. Chorava discreta e me abanava com as mãos. Disse ao senhor da universidade que sim, que no dia seguinte estaria na secretaria da faculdade na hora combinada, agradeci muito e desliguei a chamada.
Quando olhei para cima, ao lado de minha mãe, de olhos arregalados e coçando de curiosidade estava a mulher, “Mas o que é que se passa aqui? Achei que estavas a ter um fanico”. “Não Dona A., me desculpe. É que me ligaram agora da universidade, eu passei! E querem me dar uma bolsa! Mãe, inclusive, amanhã cedo tenho de estar lá” … A mulher se afasta, segue pelo corredor, estragando meu trabalho de novo. Vai ter com o marido, indignada “Ouviste? Afinal, ela conseguiu mesmo! Até a filha da senhora da limpeza vai estudar para o Porto e o nosso neto nem a carta de condução tira! Hoje em dia… ” Volta pelo corredor, atira uma coisa no chão em minha direção e diz “Parabéns isabel”. Olhei para o projétil. Era uma nota de dez euros enrolada. “Toma, uma prenda para ti, para celebrares as boas notícias”. Até então eu nunca tinha experienciado aquele nível de humilhação. “Muito obrigada, Dona A.”, balbuciei segurando o choro. “Vâmo mãe, já acabei aqui”. “Vâmo, já tô aqui fora guardando os panos e chamando o elevador”. Uma das crianças chorou, a mulher correu para o quarto e gritou do fundo do corredor “Adeus isabel, quando sair não esqueças de bater a porta e levar o lixo”.
Não me graduei em arquitetura, mas hoje sou doutoranda em Estudos Feministas.
E só agora, doze anos depois, consegui elaborar esse episódio e exorcizá-lo entre sessões de psicanálise e seminários. Afinal era isso que Spivak queria dizer com a subalternidade: contextual, relacional, interseccional. Hoje já não sou mais a filha da senhora da limpeza, nem sou a menina. Nunca fui isabel. Hoje sou muito daquilo que disseram que eu não poderia ser. Sou e continuarei sendo uma mulher-brasileira-imigrante-latino-americana. Tenho consciência da minha subalternidade, mas sobretudo dos meus privilégios. Sou mãe da Valentina e já não limpo nem encero o chão da casa do colonizador.
*
Não estamos todas no mesmo barco: um manifesto-resposta
No outro dia, enquanto eu costurava esses textos dentro de mim, fui questionada por uma professora de literatura sobre o porquê de me apresentar como uma mulher-brasileira- imigrante e não como uma “brasileira da diáspora”. Antes que eu pudesse responder ela explicou: “Veja bem, tem a ver com o poder de auto-identificação. Eu, por exemplo nasci na Itália, mas já não sou “italiana” de lá, sou “italiana de Portugal”, Italiana da diáspora. Ninguém me obrigou a vir para cá, vim porque quis. E, na verdade, nem tenho passaporte português, acho que isso é o meu coração nacionalista a resistir”, continuou. Estávamos no lançamento de um livro de uma amiga minha, também mulher, também brasileira, também imigrante. Não havia espaço para eu decantar o que “mulher-brasileira-imigrante” poderia significar, muito menos para explicar que, no meu caso, não se tratava apenas de uma escolha identitária. Entre cada hífen, séculos de história, opressão e violência articulados numa língua e num sotaque que denunciam a não pertença, a herança colonial que me atravessa. Enquanto ouvia a professora lembrava de “We’re All in the Same Boat”, um texto de Rosario Morales e pensava que não, não estamos num mesmo barco. Ela, “italiana da diáspora” que escolheu viver em Portugal seguindo a paixão pela língua. Ela, professora na universidade de Coimbra. Ela, branca, europeia, provavelmente classe-média-alta. Ela, que pôde escolher como se iria definir e recusou um passaporte. Por isso não, não estamos no mesmo barco. Eu, que não sou branca, nem indígena, talvez mestiça, depende de onde estou, depende de quem olha, depende de quem ouve. Eu, que vim para Portugal porque fui obrigada e fiquei porque não sentia que tivesse para onde voltar. Eu, que trabalhei por nove anos limpando chão de joelho, atrás de balcões, servindo mesas, para pagar meus estudos, sozinha. Eu, que tive de aprender a performar um sotaque mais palatável para não ferir a “pátria que é a língua portuguesa”, e que claramente não podia ser a minha. Eu, que tive de lutar por um passaporte sendo submetida a uma série de violências desde a apresentação de provas de “fluência da língua” à “possibilidade” de traduzir meu nome para uma versão portuguesa pois o “i” final de Isabeli soa estridente demais, exótico demais, desnecessário demais, estrangeiro demais em “bom português”. Por isso não, desculpe professora, mas o termo “brasileira da diáspora” não é suficiente para mim. Até então eu pude escolher, fui lidando. Agora que aprendi a abraçar as categorias que se interseccionam em mim não estou aberta para sintetizações, muito menos para responder a pedidos de explicação. Eu preciso dos meus hífenes e hei de precisar de muitos mais.
Y además yo soy una mujer de frontera.
*
Sobre a autora e a ilustradora:
Isabeli Santiago (1993, Brasil) feminista-ativista-decolonial. É assistente de curadoria na Galeria Municipal do Porto (d. 2019). Doutoranda em Estudos Feministas (FLUC-CES), mestre em Estudos Artísticos e licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras, ambas pela Universidade do Porto - Portugal. É cofundadora do coletivo feminista MAAD - Mulheres, Arte Arquitetura & Design.
Drika Prates é ilustradora, designer gráfica e pintora. Reside em Portugal desde 2018, quando veio fazer seu mestrado em História da Arte Contemporânea na NOVA-FCSH e participou de residências artísticas locais, como o Festival A Salto em Elvas, além da Bienal de Coruche (2019). Ilustrou o livro Exposta da poeta brasileira Marina Vergueiro e hoje estuda ilustração num curso avançado do Ar.Co, em Lisboa. O seu trabalho é influenciado pelas cartografias do corpo, da natureza e da cidade, além de transitar pelas pautas feministas da vida em sociedade.