Dos pontos e das vírgulas
Analisámos a pontuação de 25 livros de autores portugueses para percebermos como, mesmo sem palavras, serve de indicador para distinguir autores e os ritmos de cada obra.
Este artigo é inspirado num trabalho de Adam J. Calhoun e por uma experiência semelhante de Tiago Charters Azevedo, com "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" de José Saramago. Notas metodológicas no final do artigo.
José Saramago e Valter Hugo Mãe servem-se apenas de vírgulas e de pontos finais. Lídia Jorge usa pontos de interrogação e exclamação, mas deixa de fora parêntesis, dois pontos e ponto e vírgula. António Lobo Antunes e Hélia Correia nunca usam pontos de exclamação. A pontuação é uma marca distintiva do estilo de cada autor, mas quais as diferenças e as semelhanças entre cada um?
Em todos os títulos examinados, as vírgulas e os pontos finais são a pontuação mais usada, denotando o pendor declarativo de uma história que nos é contada. Nos títulos publicados este século, Gonçalo M. Tavares é o único autor que guarda mais de 10% da sua pontuação para outros símbolos. É quem mais emprega dois pontos e ponto e vírgula, perseguido de perto apenas por Carlos de Oliveira. As vírgulas representam, na maioria dos casos, entre 50-60% da pontuação; os pontos finais entre 30-40%. A diferença na relação entre a utilização de um e outro é, provavelmente, a métrica mais evidente nesta comparação. Por exemplo: apesar de Valter Hugo Mãe seguir os passos de Saramago na baixa diversidade de símbolos usados, a proporção em que os coloca está dentro da média, bem longe do único Nobel da Literatura de língua portuguesa. Além de substituir marcas de diálogo tradicionais (como o travessão ou as aspas) por vírgulas, Saramago distingue-se, ainda, pelo modo esparso como emprega pontos finais. Estes “sinais de pausa”, como lhes chamou, conferem um tom de oralidade ao texto, em que o discurso segue uma cadência própria de pausas maioritariamente curtas. Em “Ensaio sobre a Cegueira”, a relação de vírgulas para pontos finais é de sete para um.
A prevalência do uso da vírgula sobre o ponto final é um indicador evidente de frases extensas e Saramago não é único autor a demonstrar essa relação. As longas descrições de Agustina Bessa-Luís em “A Sibila” têm reflexo na proporção de vírgulas para pontos finais (ocupa o terceiro lugar), mas também no número médio de palavras por frase (144). Contudo, é António Lobo Antunes quem lidera neste tópico. Em média, uma frase de “As Naus” tem 339 palavras, o equivalente a pouco mais de meia página A4 datilografada sem espaçamento. O escritor formado em psiquiatria também se destaca por ser, proporcional e comparativamente, quem usa menos pontuação. Escreve mais de meia centena de palavras (53) por cada símbolo de pontuação usado, muito mais do que qualquer autor analisado. No romance histórico “As Luzes de Leonor”, a segunda classificada, Maria Teresa Horta, escreveu em média 44 palavras por símbolo usado, mas as suas frases têm menos de metade das palavras.
Do lado oposto, está Miguel Torga naquele que foi o seu primeiro romance. Em “A Vindima”, os diálogos contínuos das famílias que fazem do vinho do Douro a sua vida encurtam o tamanho médio da sua frase. Esta tendência é confirmada pelas outras duas obras que apresentam as frases mais curtas. Tanto “Os Maias”, de Eça de Queirós, como “Húmus”, de Raul Brandão, são textos com muito diálogo entre as suas personagens.
A pontuação dos textos evoluiu com os tempos. Exceção feita às reticências, só autores contemporâneos - António Lobo Antunes, José Saramago, Lídia Jorge, Hélia Correia e Valter Hugo Mãe - escolhem não usar um determinado sinal de pontuação.
Existe, ainda, uma correlação negativa entre o ano de publicação e o uso de pontos de exclamação e de ponto e vírgula – isto significa que, tendencialmente, obras mais recentes usam menos estes símbolos do que as mais antigas. Se olharmos para os últimos 50 anos, apenas Isabela Figueiredo faz um uso expressivo do ponto de exclamação, que representa 2,2% da pontuação de “A Gorda”. No entanto, este valor está muito aquém das proporções apresentada pelos títulos do final do século XIX e início do século XX, em que a exclamação ocupava 5-6% do total de pontuação. O campeão das exclamações é Eça de Queirós, com mais 3000 pontos deste tipo. Proporcionalmente, Queirós e Torga estão empatados no uso de pontos de exclamação e reticências.
Um aparte sobre parêntesis
Tendo em conta esta amostra de títulos, os parêntesis são a pontuação menos amada – oito livros não têm qualquer par. Não parece haver relação entre o ano de publicação e esta escolha. Camilo Castelo Branco não os colocava, tal como Aquilino Ribeiro ou Hélia Correia. Quem os usa, afinal?
As derivações existencialistas do narrador-protagonista de “Sinais de Fogo” são notórias no uso que Jorge de Sena faz dos parêntesis: usa mais de 300 pares, quase um a cada duas páginas. Proporcionalmente ao número de palavras, todavia, é José Cardoso Pires quem mais se serve destes símbolos. Em “O Delfim”, os parêntesis ocupam cerca de 4% da pontuação total. Dos autores mais recentes, Afonso Cruz é o que mais se escuda nas curvas destes símbolos: 3% da pontuação que usa em “A Boneca de Kokoschka” são parêntesis.
Notas Metodológicas
Escolhemos 25 romances de autores portugueses de referência, num esforço de representação de várias épocas e estilos de prosa literária dos últimos 150 anos. A lista final foi definida, em parte, pela disponibilidade de textos em formato eletrónico. Removemos introduções e prefácios escritos por outros autores, bem como notas da editora.
Para as obras de Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ana de Castro Osório, Mário de Sá-Carneiro, Raul Brandão e Fernando Pessoa (todas em domínio público), analisámos as versões dos textos disponibilizadas pelo Projecto Adamastor. Para os restantes títulos, utilizámos as versões comercializadas pelas editoras.
Relativamente à pontuação, examinámos a utilização de vírgulas, pontos e vírgulas, pontos finais, de exclamação e de interrogação, reticências, parêntesis e dois pontos. Decidimos excluir o travessão, visto que se confundia com um hífen no processamento de texto. Consequentemente, também excluímos as aspas da análise.
O código que desenvolvemos está aberto e disponível no nosso GitHub.