A cultura partilhada que não se pode partilhar
Sherlock Holmes e Anne Frank enrolados numa confusão que os deixa mais longe de nós, um rato que se tornou imperador e uma indústria criativa que prospera à margem de um direito de autor.
“Respeitar as mulheres: protegido por direito de autor?” - O atrevimento de Adi Robertson não é inusitado. A jornalista e editora do The Verge escrevia a propósito de um processo submetido pelos gestores do património de Sir Arthur Conan Doyle contra a Netflix por infração de direito de autor relativo ao filme “Enola Holmes”. A contestação baseia-se na premissa de que um Sherlock Holmes de feitio mais humano está protegido por direitos de autor.
O detetive mais famoso da literatura teve a sua primeira aparição em 1887. A sua personalidade desapegada e indiferente foi, desde cedo, uma das características que o distinguiu, mas a vida do seu autor levaria a uma mudança na personagem. Depois de perder um dos filhos e o irmão em poucos meses, o escritor escocês acabaria por tornar Sherlock Holmes um pouco mais afável. Acontece que, nos Estados Unidos da América, as histórias em que Holmes demonstra a sua faceta ligeiramente mais prazerosa não estão no domínio público. Na queixa, pode ler-se que “Holmes tornou-se capaz de travar amizades. Conseguia expressar emoções. Começou a respeitar mulheres.” Insólito, mas real: respeitar mulheres tornou-se um traço de personalidade distintivo ao ponto de representar uma nova dimensão de uma personagem fictícia e, sim, pode ser fechado como propriedade.
O estranho caso de Sherlock Holmes não é uma dor de cabeça deste lado do Atlântico Norte, porque as obras de Sir Arthur Conan Doyle estão no domínio público há duas décadas. Na União Europeia, uma obra entra no domínio público 70 anos após a morte do autor. A entrada dá-se no início do ano seguinte ao final da contagem – algo que já provocou alguns soluços no mercado editorial nacional. A partir desse momento, esse património artístico torna-se um bem comum – qualquer um pode usufruir dele, estudá-lo, remisturá-lo, redistribuí-lo sem barreiras. O seu valor passa a estar acessível a todos. Mesmo num mercado livreiro modesto como é o português, desde o ano 2000 as histórias de Sherlock Holmes já foram republicadas por quase uma dezena de editoras, casos da 11x17, Europa-América, Fábula, Girassol, Leya, Livros do Brasil, Relógio D’Água, Verso da História e revista Visão.
Com leis diferentes consoante o território de utilização de uma obra, as regulações do direito de autor são um emaranhado de fios. O avanço tecnológico e a ideia da internet enquanto paisagem sem fronteiras vieram apertar estes nós com mais força. Por várias vezes, a UE tentou aliviar a embrulhada, mas, quando analisada ao pormenor, a harmonização do domínio público nos estados-membros é mais um mito do que uma realidade. Questões como a definição do que é um trabalho coletivo, alargamentos especiais da extensão do direito de autor concedidos nalguns países ou durações distintas consoante os formatos da obra tornam o novelo ainda mais difícil de desenlear.
Um dos desarranjos mais emblemáticos provocado por esta manta de retalhos é o “Diário de Anne Frank”. Aquela que é hoje considerada a versão completa do livro está definitivamente no domínio público na Polónia, mas nos Países Baixos terá direitos de autor, pelo menos, até 2036. A trama adensou-se em 2015, quando a fundação Anne Frank reclamou Otto Frank (pai da adolescente e único sobrevivente dos que moravam no esconderijo em Amesterdão) como co-autor da obra. Acontece que a publicação original do texto não incluía certas partes que Otto decidiu deixar de lado – temas como a descoberta da sexualidade por parte de Anne, a menstruação ou a falta de afeto entre os seus pais acabaram por só ser incluídas mais tarde. Um artigo do New York Times detalhava que a medida foi vista por especialistas e historiadores como um avanço estratégico sem outro objetivo que não o de encher os cofres da fundação por mais tempo. Entre os que se juntaram ao coro de protestos está a Casa-Museu de Anne Frank, que desde 1960 garante a preservação e divulgação da sua memória, sendo um dos museus mais visitados no país das tulipas.
Por cá... é complicado. A primeira tradução publicada no nosso idioma data de 1955. Assinada pela galardoada Ilse Losa, essa versão portuguesa só entrará no domínio público em 2077, uma vez que traduções contam como obras a título próprio e a Losa faleceu em 2006. Quanto ao texto original, se se considerar que Otto Frank tem co-autoria da obra, não está. Assumindo Anne Frank como única autora, é hoje património de todos nós. O caminho até esta conclusão?
- Trabalho artístico e literário
- Que não é um tratado, uma lei, uma regulação, nem uma tradução oficial de algum texto deste tipo
- Também não é um relatório ou decisão de um corpo administrativo ou judicial, nem de qualquer outra entidade estatal, nem uma tradução oficial de algum texto deste tipo
- O seu autor é uma pessoa natural
- Que era nacional de um país da EEA
- O trabalho já foi disponibilizado
- Foi publicado menos de 70 anos depois da sua criação
- E foi publicado há mais de 70 anos
Precisamente no ano em que “Diário de Anne Frank” deveria ficar aberto na Europa, também o infame “Mein Kampf” (“A Minha Luta”) entrou no domínio publico e a sua republicação tornou-se inevitável na Europa. Devidamente anotada e apoiada por historiadores, a edição da obra de Adolf Hitler tornou-se num dos livros mais lidos desse ano na Alemanha, onde não era vendido desde o desfecho da II guerra mundial. Em Portugal, o manifesto nazi chegou pelas chancelas da E-Primatur e da Guerra e Paz. Numa altura em que a ascensão da extrema-direita é mais do que uma ameaça, haveria melhor contraponto a essas ideologias do que espalhar o legado deixado por Frank?
Fechar é proteger de quê?
Também “O Principezinho” de Antoine de Saint-Exupéry continua fechado em França, devido a uma extensão adicional de 30 anos atribuída a autores que foram mortos durante as grandes guerras mundiais. Contudo, o livro entrou no domínio público na maior parte dos países europeus em 2016. Nos EUA, isso só acontecerá daqui a cerca de 20 anos, uma vez que a regra instituída dita 95 anos após a publicação do trabalho em questão. Acresce que parte das ilustrações são marcas registadas por lá, o que pode dificultar a sua utilização.
A problemática de uma cultura partilhada que afinal não o pode ser fica mais clara quando a comparamos com outros tipos de propriedade intelectual, nomeadamente patentes, mais conhecidas como invenções. Regra geral, a utilização exclusiva de uma patente dura vinte anos a contar a partir do registo, mas esse número desce para metade no caso de modelos de utilidade. No que respeita a patentes de design, são de apenas cinco anos, podendo ser renovadas até 25 anos, mas apenas cinco de cada vez.
Quando falamos em direito de autor, importa salientar que existem dois tipos de direitos: os morais e os patrimoniais. É a estes últimos que nos referimos ao longo deste artigo. São direitos que concernem sobretudo à distribuição e exploração de trabalhos, sendo que aos olhos da lei não existe diferenciação entre fins comerciais ou não. Quando uma editora publica um determinado trabalho, regra geral há uma transferência (total ou parcial) dos direitos patrimoniais que lhe correspondem. Já os direitos morais dizem respeito à atribuição da autoria da obra e à salvaguarda da sua integridade. Em Portugal, estes pertencem exclusivamente ao autor (e respetivos herdeiros), sendo “inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis”.
Existe uma indústria criativa que prospera à margem da ideia de um direito de autor: a moda. Apesar dos desenhos dos estilistas estarem protegidos, a sua materialização raramente está, porque a roupa é vista como algo com uma função utilitária. Não obstante existirem outros mecanismos para proteger certas partes de uma peça de vestuário cujo carácter inovador ou distintivo se destaque (por exemplo, marcas e logotipos, bem como certos designs e padrões estão protegidos), regra geral isso não se aplica. Por outras palavras: uma camisola é apenas uma camisola, independentemente de ser da Adidas, da Supreme ou tricotada à mão por uma avó. Aliás, um tribunal europeu decretou no ano passado que o design das três riscas não era suficientemente associável à marca alemã, retirando-lhe o estatuto de marca registada.
É certo que, ao longo das últimas décadas, tem havido uma pressão constante do setor para alargar as proteções de propriedade intelectual, mas estas tendem a cair em saco roto. Afinal, tem sido difícil provar em tribunal como é que a falta de proteção adicional tem impacto numa indústria que continua a gerar lucros avultados sistematicamente – de acordo com o mais recente "The State of Fashion” da consultora McKinsey, o lucro da indústria da moda tem crescido sem interrupções desde 2016. Na lista de corporações com maior lucro global, o relatório indica que cinco das dez maiores do mundo estão no velho continente. Inditex, LVMH, Kering, Hermés e Adidas arrecadaram mais de 9 mil milhões de dólares em lucro acumulado. Na União Europeia, as indústrias têxtil, do vestuário e do calçado têm um volume de negócios estimado em cerca de 200 mil milhões de euros anuais. Ainda assim, é de assinalar o esforço da UE em mitigar os efeitos da contrafação na economia local.
Conforme explica Johanna Blakley, uma das maiores lições que se podem tirar da indústria da moda é que apesar de ser “legalmente possível copiar um artigo, isso não quer dizer que seja aceitável”. Ou seja, quando uma marca como a Zara ou a H&M vende imitações de baixo custo de peças Balenciaga ou Gucci, isso não tira valor ao artigo original, porque a originalidade é reconhecida independentemente da cópia. Quem compraria a preço de luxo, provavelmente continuará a fazê-lo; quem estava excluído desta cadeia de consumo passa a ter uma versão a um preço acessível. A diretora e investigadora do Norman Lear Center, na University of Southern California, prossegue o argumento relembrando que várias marcas de luxo acabaram até por criar coleções para as classes médias, alargando assim a sua base de clientes. Apesar de ser o mais falsificado, o segmento de luxo é precisamente o que mais tem crescido nos últimos anos.
Como um pequeno rato se tornou no maior imperador da cultura
O valor do domínio público é particularmente evidente pelo uso que gigantes do conteúdo fazem deste tipo de obras. Sem rival neste campo está a Walt Disney Company. “Aladdin” é baseado num dos contos de “As Mil e uma Noites”, “A Pequena Sereia” e “Frozen” em contos de Hans Christian Andersen, “Hércules” é uma adaptação do mito da Grécia Antiga, “Mulan” é uma recriação da lenda chinesa de Hua Mulan… E não obstante as semelhanças com a série japonesa “Kimba the White Lion”, os criadores de “O Rei Leão” garantem que foi vagamente inspirado nas histórias bíblicas de José e Moisés, bem como na peça “Hamlet” de William Shakespeare. Na lista dos filmes de animação tradicional com maiores receitas, a Disney domina, ocupando três quartos da tabela. Mais de metade são títulos baseados em histórias no domínio público.
Tudo isto poderia ser um relato de sucesso sobre como uma das maiores empresas do mundo recapitaliza o domínio público de forma sistemática, contribuindo para a sua revitalização enquanto mecanismo de produção cultural. Todavia, os tentáculos da corporação na legislação norte-americana relativa ao direito de autor estendem-se há décadas, estrangulando o domínio público em prol de um único beneficiário.
Quando Walt Disney criou o rato Mickey, os termos da legislação em vigor apontavam que o seu desenho original estaria livre das amarras da propriedade intelectual em 1984, mas isso nunca chegou a acontecer. À medida que o seu império de conteúdo foi crescendo, a Disney foi carregando no lobbying. Em 1998, o “Mickey Mouse Protection Act” foi uma dupla vitória para a empresa: além de ter alargado a proteção de direitos de autor nos EUA para 95 anos após a data de publicação, fez com que durante vinte anos nenhuma obra entrasse no domínio público naquele país. A pressão da Disney sobre o processo legislativo mantém-se até aos dias de hoje. Desde esse ano, gastou mais de 70 milhões de dólares em lobbying. Paralelamente a isto, aposta em estratégias de coação agressivas contra infrações de menor importância - tendo movido processos judiciais contra, por exemplo, jardins de infância, escolas e pequenos empresários. Em 2019, as receitas líquidas da Walt Disney Company ultrapassaram os 12 mil milhões de dólares. A corporação tem um património avaliado em mais de 193 mil milhões de dólares - cerca de 91% do PIB português.
Entre as criações próprias e as aquisições que foi fazendo, a Disney detém atualmente mais de um terço das 25 franquias de entretenimento mais valiosas do mundo. O seu catálogo inclui clássicos de animação, as aventuras da Pixar, os universos Marvel e Star Wars, mas essa é só a ponta do icebergue. No ano passado, com a compra da 21st Century Fox, expandiu a sua coleção cinematográfica de forma substancial, tornando-se “dona” de alguns dos filmes mais rentáveis de sempre (casos de “Avatar” e “Titanic”) e, até, de algumas sagas rivais (como “A Idade do Gelo”). Para lá do óbvio desequilíbrio que gera em termos da livre concorrência nos mercados em que opera, os avanços da Disney nas últimas décadas trazem um outro revés pernicioso.
O seu domínio da cultura ocidental (e, sejamos realistas, global) tornou-se ubíquo e inevitável. Contudo, as práticas que adota na salvaguarda da sua propriedade intelectual extravasam continuamente uma proporção adequada à importância que assumiu nos nossos dias. Será, no mínimo, ingénuo achar que é muito benevolente permitir que os memes do Baby Yoda andem à solta pela internet. Aliás, os memes são a representação perfeita do que está errado com as regras atuais, estando num limbo daquilo que é considerado um uso válido para algo protegido por direito de autor.
“Sintam-se à vontade para usá-las dentro dos limites do bom senso.”
Foi com esta mensagem que, do outro lado do mundo, uma das casas mais reputadas do cinema de animação aproveitou a pandemia para abrir parte do seu trabalho. Em Setembro, o Studio Ghibli disponibilizou para utilização gratuita 400 imagens em alta resolução de filmes seus. Neste primeiro lote de oito películas, brilham sobretudo filmes recentes, incluindo o vencedor do Óscar da Academia para Melhor Filme de Animação em 2003, “A Viagem de Chihiro”, e um dos nomeados de 2014, “As Asas do Vento”. O estúdio anunciou que vai continuar a libertar imagens do seu vasto catálogo no futuro próximo.
A Viagem de Chihiro (2003)
Apesar de simples, o gesto tem um potencial revigorante. Assente num entendimento implícito sobre o que se pode fazer com as imagens, denota uma confiança alargada na sua base de fãs (e não só). É, ainda, uma reafirmação da qualidade do seu trabalho, indiscutivelmente reconhecido para lá do seu caráter proprietário. Seguindo a máxima de que "os bons artistas copiam, os maiores roubam", o estúdio Ghibli de certa forma descriminaliza a inspiração na sua obra. Simultaneamente, garante que o seu legado perdure através da essência da originalidade das imagens e, também, do que significam para os outros.
Os limites do bom senso são naturalmente discutíveis, mas é difícil olhar para os efeitos práticos das regulações sem questionar o seu impacto a longo prazo. Num estudo publicado em 2013, Paul J. Heald sugeria que a extensão do direito de autor era um fator determinante na diminuição do acesso a obras culturais, notando uma forte correlação entre a extensão do direito de autor e o desaparecimento de obras do mercado. As suas observações indicam que existe uma espécie de vazio no que respeita ao número de livros originalmente publicados no século passado disponíveis na Amazon. O contraste torna-se mais claro quando comparado com a quantidade de títulos no domínio público disponíveis na mesma plataforma.
A verdade é que a maior parte das obras perde o seu valor comercial ao fim de pouco mais de uma dúzia de anos. Num outro artigo, o economista Rufus Pollock propõe a marca dos quinze anos como duração mais favorável deste direito, recomendando 38 anos como limite máximo. Isto porque, caso não sejam sucessos de vendas retumbantes, os filmes que saíram há mais de cinco ou dez anos tornam-se difíceis de ver, os discos deixam de ser reeditados para não serem mais ouvidos e os livros desaparecem das prateleiras do retalho ao fim de uma ou duas edições.
Em Portugal, os livros acabam nos catálogos da Biblioteca Nacional e a Cinemateca tem feito um trabalho louvável na preservação do património cinematográfico português. No entanto, num mundo em que quase tudo parece estar apenas a uma ligação de internet de distância por que é tão difícil garantir o acesso à cultura que nos une sem ser necessária uma deslocação física? A recente inauguração da Fonoteca Municipal do Porto ilustra na perfeição o problema de um património comum enclausurado. O seu espólio de quase 35 mil discos até tem uma montra virtual, mas nenhuma das melodias está disponível para ser ouvida. Com a maior parte relegada para o mercado de segunda mão, torna-se difícil justificar o interesse de manter este conteúdo fechado.
Todos os dias partilhamos referências culturais. A cultura pode ser o idioma que falamos, a comida que cozinhamos ou os livros que lemos. Hoje em dia, é uma boa parte do nosso consumo mediático. À medida que o curso da história guina numa ou noutra direção, o que vemos e ouvimos segue alucinado nessa eterna perseguição de pontos comuns. A cultura é o que nos traz unidade connosco e com o outro.
Desde o primeiro dia do ano, os trabalhos de autores que morreram em 1949 estão no domínio público em Portugal - uma enumeração onde figuram Margaret Mitchell (escritora de “E tudo o vento levou”) ou Richard Strauss (compositor de “Assim falou Zarathustra”), entre tantos outros. Todos os anos, a ANSOL - Associação Nacional para o Software Livre reúne uma lista com autores nacionais cujas obras passaram a ser de todos nós.